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Mariana Moreira

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A crença no que virá

18/12/2015 às 15h33

Por Mariana Moreira

O poeta Chico Buarque, em parceria com Edu Lobo, consegue traduzir, em versos, o sentimento presente na vivência das pessoas comuns que, utilizando-se de experiências, crenças e costumes, organizam a vida e edificam esperanças e promessas na tentativa de superar obstáculos e minimizar sofrimentos e angustias. Dizem os poetas na canção.                                                    

A permuta dos santos: São José de porcelana vai morar/ na matriz da Imaculada Conceição/ O bom José desalojado pode agora despertar/ E acudir os seus fieis sem terra, sem trabalho e pão. Vai a Virgem de alabastro Conceição/ na charola para a igreja do Bonfim/ A Conceição incomodada vai ouvir nossa oração/ Nos livrar da seca, da enxurrada e da estação ruim. E por aí seguem os trovadores, finalizando: Mas se a vida mesmo assim não melhorar/ Os beatos vão largar a boa-fé/ E as paróquias com seus santos tudo fora de lugar/ Santo que quiser voltar pra casa só se for a pé.

Os versos, usando o recurso da ironia e da sátira, expressam as táticas e estratégias que, nos rincões dos sertões, nestes tempos que antecedem a temporada de chuvas, ou sua dramática ausência, são largamente empregadas pelos sertanejos como antecipação de futuros e confirmação de resultados. Táticas e estratégias que se personificam nas pedras de sal no dia 13 de dezembro, quando a devoção a Santa Luzia traduz desejos de umidade do ar em quantidade e proporção que deixem todas as pedras ensopadas de chuvas e abundância nos primeiros meses do ano vindouro.

Uma esperança que se confirma na fumaça das coivaras, nos fins de tarde, quando o vento a tange no sentido nascente enquanto olhos ansiosos se espicham para um poente avermelhado pelos derradeiros raios de sol entrecortados por “vieiros” tradutores de “carregação” formada pras bandas do Piauí. Uma esperança reforçada na barra do Natal quando o sol nascente se deixa esconder por nuvens consistentes e mensageiras de tempos de fartura e alegria. Ainda que sem tanta frequência, é possível se vê algum São José sendo sorrateiramente roubado dos altares particulares e reverencialmente guardado em secretos lugares onde, com religiosa regularidade, recebe veladas ameaças caso não mande as chuvas benfazejas. O santo que somente retorna ao seu altar de origem quando as primeiras chuvas encharcam o chão calcinado e faz brotar a babugem que começa a travestir de verde a cinzenta paisagem. Um retorno sempre acompanhado de procissão, espocar de rojões, rezas e preces, conversas e prosas regadas a chás e cafés.     

A modernidade que “desencanta o mundo”, afugenta visagens, malassombros e almas penadas, oculta butijas, traz outras dimensões para direcionar e classificar vidas, atos e gestos. A racionalidade esconde os santos e suas crenças e expõe o El Niño como parâmetros divisor da fartura e da carência, da chuva e da estiagem, da esperança e do medo. Muitos, na atualidade, não mais se apegam a São José como porto de segurança, mas se pautam pelas previsões que as coloridas telas televisivas e seus iconográficos mapas e desenhos traçados por infalíveis cientistas, apresentam como certeza do que virá.

E muitos santos, descontentes, sequer voltam para casa. Nem mesmo a pé.  

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

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