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Padre Djacy

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Conversando com defuntos

19/01/2016 às 18h41

Por Padre Djacy Brasileiro

Coisa esquisita, hein?  Conversando com defuntos só pode ser mistério assombroso. Não fica ninguém nessa hora. Assombração total. Conversar com defuntos é de arrepiar o cabelo, aumentar as pancadas do coração, travar as pernas, sufocar a voz por socorro.

Pois é, trata-se de um artigo cômico, engraçado, mas, ao mesmo tempo, polêmico, crítico e revelador. Pois, nesse diálogo com alguns defuntos, há toda uma revelação: a hipocrisia diante dos que morrem.

Faz tempo que venho conversando com alguns mortos, mesmo ainda nos seus ataúdes. Sozinho, sem ninguém, aproveitei para dar uma cutucada em cada morto. Todos eles foram solícitos.  Puxei conversa.  Queria saber deles o que achavam do choro, do clamor, das lágrimas, faixas, discursos de homenagens por parte de tantas pessoas que os cercavam.

Foram diversos defuntos. No início tive medo, arrepio, de estar ao lado de gente morta, cada morto era de assombrar. Pensei sair em disparada. Mas fiquei, tive coragem. E fui em frente. Tinha hora que não sabia se chorava, ria, ou corria.

Entrei em processo de empatia com cada falecido. Suas palavras comoviam-me, deixando-me triste, pensativo, revoltado. Era tudo o que eu queria saber de sua vida, de sua história, de sua família, de seus amigos etc. Ouvia atentamente a voz embargada desses tristes finados. Sua voz era embargada, de seus olhos saiam lágrimas. Suas mãos tocando nas minhas, como a dizer: fique perto de mim, não me deixe sozinho. Eita, que medo! Mãos de defuntos nas minhas. Mãos geladas. Quase corria!

Vou consignar tudo o que ouvi dos falecidos. São palavras fortes, chocantes, reveladoras, emocionantes, tristes etc. Vale salientar que os nomes dos falecidos são fictícios, exatamente para preservar sua identidade. Caso contrário, eles vêm me buscar de madrugada. Ai estou lascado mesmo.

Defunto Chico Zé

-Padre Djacy, passei a vida sozinho, sem ninguém me visitar, só porque morri, minha casa tá cheia de gente. Nunca vi isso na minha vida.

-Quando eu era vivo, ninguém queria saber de mim, agora é todo mundo olhando pra mim, com cara de choro. Vão pro inferno, magote de bestas.

-Tá vendo padre, hoje eu sou querido, só porque morri.

Defunto Zeferino

-Oxe, aqui tem tanta gente, tanta gente, que mais parece um carnaval. Nunca vi esse povo na minha vida. É cada um.

-Nunca ninguém me deu uma roupa, um sapato, um perfume, só porque morri agora é roupa nova sapato novo e toma perfume.

-Quando eu estava doente, num hospital, ninguém me visitava, meus familiares e amigos me abandonaram lá no hospital. Eu vivia na maior solidão, na maior tristeza. Ninguém ia me ver. Agora, porque morri, é todo mundo aqui me olhando-me beijando, passando a mão na minha cabeça, me cheirando. Agora é tarde, seu padre. Eu queria isso era quando eu estava doente, lá no hospital.

-Padre, quando fiquei velho, meus filhos não se importavam comigo, não estavam nem aí comigo. Não cuidava de mim. Eu sentia tanto desprezo, tanto desgosto, que passava horas e mais horas chorando. Agora, depois que morri, estão todos aqui desesperados, gritando: pai, a gente te ama, pai agente te ama. Oxe, só agora, depois que morri? Por que não cuidavam de mim, quando eu estava vivo? Agora é tarde, meus filhos.

-Tá vendo, até a minha ex-mulher, que não tinha pavor deu, tinha ódio, raiva, está aqui me olhando com os olhos molhado de lágrimas. Oxe, eu não sabia que morrer e ficar dentro de um caixão era tão bom.

Defunto Chico Peba

-Padre Djacy, só porque morri, o que tem de gente chorando em torno do meu caixão não é brincadeira. Quando eu estava vivo, ninguém me conhecia. Nem minha família estava aí comigo. Ninguém se lembrava de mim.
-Esses meus filhos que estavam gritando, desesperado, derramando tantas lágrimas, porque morri, é tudo hipocrisia. Quando eu estava doente, me contorcendo de dores e mais dores, eles não queriam saber de mim. Iam para as festas e me deixavam gemendo, gritando desesperadamente. Pra que chorar por mim depois que morri, hein, seu padre?

Defunto Macaíba

-Quando eu estava preso, na maior solidão da cadeia, ninguém aparecia lá, agora vem esse pessoal da igreja rezar por mim. E por que não me visitava quando eu estava preso? Por que não iam a cadeira levar para mim um pouco de comida? Só agora, depois que morri vem rezar, chorar? Eu precisava de vocês, da solidariedade de vocês, quando eu me encontrava na maior tristeza da vida, lá na cadeia.

-Antes de morrer, eu era alcoólatra, bebia muito, vivia jogado na rua, nas praças, nas calçadas. e pessoas olhavam para mim com indiferença, com novo. Eu era tratado como bicho, um Zé da vida. Muita gente da igreja, que ia pra missa todo dia não se importava comigo, falava mal de mim, tinha nojo de mim. Não tentaram me ajudar para sair dessa vida. Agora, depois que morri, lá vem essa gente do padre rezar pra minha alma. Hipocrisia da porra!

Defunta Léca

-Padre Djacy, tá vendo essa gente chorando, desesperada, soluçando, diante deste meu caixão? Essa gente, seu Padre, quando eu era viva, vivia falando mal de mim. Esse povo que está aqui chorando, colocando flores sobre o meu corpo morto, falava mal de mim, dizia que eu não prestava, eu era isso, aquilo e tantos outros adjetivos.  Depois que morri, agora é chorando, colocando flores, me homenageando. Eita hipocrisia da bexiga. Só porque morri agora virei santa. Como é bom morrer pra ser santa.

Defunto Brás

-No meu velório trouxeram de tudo, coisa que nunca vi: pão, bolacha, bolo, salgado, refrigerante, creme de galinha. Agora, quando eu estava vivo, eu vivia passando fome, eu vivia na miséria, mas ninguém me ajudava, nunca ninguém quis me tirar da miséria. Agora, só porque estou morto neste caixão, inventaram de trazer comida boa. Pra quê, hein? Defunto não come. Por que não mataram minha fome quando eu era vivo?

-Até o padre veio me visitar, rezou e jogou água benta em mim. Esse padre, quando eu vivia na miséria, no abandono, passando fome, nunca me deu um bom dia, uma boa tarde. Nunca teve compaixão de mim. Nunca procurou saber sobre o meu sofrimento, minha miséria. Só porque morri, lá vem ele rezando por mim. Eu queria desse padre era reza e ajuda, solidariedade, quando estava ainda vivo.

Defunta Biba

-Tá vendo esse chororô, seu vigário? Não é por amor a mim não, é porque não tem mais a boquinha da minha aposentadoria. Eles estão chorando não é porque morri, mas é porque vão ficar sem o meu dinheirinho.
-Esses netinhos, nem todo seu vigário, que estão chorando porque morri, nunca cuidaram de mim, não ligavam para mim, não queriam saber de mim. Só porque morri agora vem chorando. Eita hipocrisia! Valei-me meu padim Ciço. Ah, nem me lembrava, eu morri.

Defunto Zé Biró

-Eita doutor hipócrita! Eu era empregado desse doutor na sua empresa. Ele, a mulher dele e os filhos viviam me humilhando no trabalho, eles tinham raiva de mim. Eles me tratavam com arrogância. Agora veja: só porque morri, estou neste envelopão, eles vieram aqui, derramaram lágrimas. Oxe, o tal do doutor fez até um discurso me elogiando. Vão pra o inferno, bando de hipócritas. Eu queria era ser tratado como gente quando era vivo e trabalhava na empresa dele. Pra que esse discurso? Já estou morto. Discurso não me devolve a vida.

Defunta  Bubu

– Só porque morri, agora é todo mundo me chamando carinhosamente pelo diminutivo. É Buiquinha pra cá, Buiquinha pra lá. Essas pessoas que agora choram e me chamam carinhosamente pelo o nome são todas falsas. Em vida, nunca me trataram bem, com carinho, com amor, com dignidade. Adoeci, nunca perguntaram como eu ia. Cara de pau, porque morri, agora é Buiquinha morreu, Buiquinha vai fazer falta…

Defunta Birita

– Eita que minha casa tá lotada de gente. Morri com oitenta anos. Em vida, nunca vi minha casa assim. Não recebia visita de ninguém. Eu vivia sozinha, sem ninguém. Os meus vizinhos não vinham me visitar, nem minha família. Depois que fechei os olhos, minha casa tá lotadinha. Oxe, depois que morri não adianta mais. Isso é hipocrisia, é falsidade!

Defunto Pinto

-Depois que morri é tanto elogio. Estão dizendo assim: Pinto era bom, pinto era trabalhador, Pinto era sincero, Pinto era honesto, Pinto era educado, Pinto era humilde, Pinto era isso e aquilo. Agora, seu padre, quando eu era vivo, nunca ouvi um elogio para aumentar minha autoestima. Muitos desses que estão me exaltando tinham raiva de mim, falavam mal de mim. Vão mentir e ser hipócritas no inferno, bando de falsos.

Defunto Tapioca

-Estão celebrando missa do meu corpo presente. Nunca vi tanta gente. É tanta reza, tanta homenagem, tantas emoções. Tudo isso é falsidade, hipocrisia. Vejam, só, seu padre:

-Vou começar pelo padre. Esse padre, sabendo da minha vida, do meu sofrimento, das minhas dores, nunca foi lá em casa, nunca me ajudou nem sequer com uma palavra,

-Essas beatas que estão cantando, rezando, chorando, também nunca me visitaram.

-Esse povo que chora, nunca procurou saber do meu sofrimento, da minha doença.

-Nunca vi tanta hipocrisia na minha vida de defunto.

Defunto Picolé

-Meu Deus! Eu num caixão bonito, elegante e caro. Acho que este caixão custou uma fortuna. Foram meus filhos que compraram. Tudo bem. Até agradeço. Mas quando eu era vivo, nunca um filho meu chegou para dizer assim: pai, comprei essa rede boa, bonita, para o senhor. Eles nunca ligaram para mim. Tem nada não!

Defunto Zé Caju.

-Eita hipocrisia, falsidade, desses meus filhos. Todos chorando porque morri. Agora amanhã, pode aguardar seu padre, todos eles vão estar brigando, se matando,pela herança que vou deixando, frutos do meu suor.

-Essa minha família está aqui desesperada, chorando, mas digo uma coisa com toda verdade: todos estão pensando como vai ficar a minha terra, as casinhas que eu tenho. Eles estão pensando é na herança. Quando eu estava vivo, não estavam nem aí comigo.

-A briga vai ser feia por causa da herança. O que vai ter de filhos, netos, noras, genros, brigando pelo que deixei não será brincadeira. Que Deus ponha a mão no meio para não haver coisa pior.

Defunta Zefa

-Diabo é isso na minha cara? Meteram pó na minha cara. Pintaram minhas unhas, botaram um negócio no meu cabelo, e até perfume. Oxe, só porque virei finada? Antes ninguém se preocupava com o meu rosto estragado, com minha pele ressecada e com a minha higiene pessoal. Não sabia que era bom morrer pra ser ficar tão bem arrumada. Mas por que fizeram isso depois que morri? Valha, minha Nossa Senhora da Boa Morte!

Defunto Flor.

-Oxe, nunca vi você chorando por mim, e agora você está em pranto porque morri. Vai ser falso no inferno, seu Você nunca me ajudou em nada. Você era meu vizinho, ouvia de madrugada os meus gritos de tanta dor, e você não vinha me socorrer. Pare de chorar e vá pedir perdão, amigo. Seu choro é choro de falsidade.

Defunto Pedoca

-Esse choro todo em torno do meu corpo neste preto caixão não é porque morri, é remorso. E remorso pesa na alma, na consciência.
 Quer ser bom?  Quer ser homenageado? Quer ser chamado pelo diminutivo? Então morra!

Padre Djacy

Padre Djacy

Pároco da paróquia Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, da cidade de Pedra Branca, no Vale do Piancó, Diocese de Cajazeiras, Paraíba.

Contato: [email protected]

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