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Gildemar Pontes

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O amor, a poesia e a inutilidade de todas as coisas

28/03/2014 às 19h58

1. Os amantes merecem o céu porque amam. Deles são extraídas as verdades que construíram a história de tantos homens e mulheres, sob a bandeira do amor e da paixão. Pelo amor já se fez guerra, já se matou, já se morreu, porque o amor está acima da vida e da morte. Só quem ama pode libertar-se das trevas do medo. Só quem ama pode construir outros caminhos. Só quem ama pode abrir as gaiolas, sem medo de perder o canto dos passarinhos. Só quem ama pode conversar com Deus, baixinho, e Lhe dar conselhos para melhorar a humanidade. Só quem ama traz no peito estampado uma bandeira para todas as lutas. Só quem ama pode desafiar a loucura e a sanidade e rir delas porque o amor é tão louco quanto sadio. 

Só quem ama pode tirar as coisas do lugar e virar o mundo de cabeça para baixo, pela felicidade. Só quem ama pode entender o outro como ele queria que fosse entendido o seu querer. Só quem ama perdoa mil vezes o erro que não se cometeu. Só quem ama pode dar a mão depois de ser esquecido num canto, sem calor, sem voz, sem lenço que contenha o pranto, com uma dor terrível mastigando o coração. E dar a mão para quem ama é dar-se o presente que se pretende. 

Os amantes são cativados com pequenas coisas, simples gestos, mas que são capazes de durar uma eternidade. A eternidade para os amantes é um momento de magia que ocorre toda vez que eles, aos braços um do outro, vivem como se fosse o último momento. Só os que amam sabem deitar na areia, perto do mar, para ouvir a voz dos peixes. Só os que amam têm nos olhos a poesia que nasce do coração. Só os que amam ofertam poemas como se fossem pedaços de si mesmos. Só os que amam têm uma usina de sonhos e uma indústria de tijolos de carinho para construir a casa do seu amor.

2. Falar de amor hoje em dia soa meio estranho, anacrônico, deslocado no tempo e no espaço. Não falamos mais de amor porque os atores e atrizes da TV, investidos em personagens à nossa imagem e (des)semelhança, já o dizem tudo e com uma economia extrema de palavras que nos sairiam caras, angustiadas, difíceis de averbá-las, caso precisássemos ter de encará-las para dizer ao outro. Para que então serve o amor nessa sociedade do espetáculo, dita pós-moderna, contraditória e com todos os seus símbolos originais sendo trocados pelos signos tecnológicos?

3. E o que fazer com os poetas, seres amaldiçoados por Platão e pelos professores enfadonhos das universidades, seguidores de regras e métodos? Como acondicionar poetas numa sociedade burocratizada e violenta, cheia de preconceitos e falsos ídolos? Quem conseguiria falar de poesia com um político, um empresário, um gerente de banco, um comerciante, um professor? Eu falei professor? Pois é, um professor. Então com quem falaremos sobre poesia, além da meia dúzia de leitores e outros poetas?

4. A solução para essas questões é muito simples. Queimem os livros de poemas, emudeçam os poetas. Começando por mim. Eu não vou salvá-los da apatia dos medíocres nem do mal dos corruptos. Eu não vou subir em palanques e dizer pela voz dos ditadores que a poesia é necessária. Não, ela não é. Sequer fará parte dos planos escolares. E os poetas amaldiçoarão todos e apertarão os botões do caos. Não se choquem ao desviarem de cadáveres nas calçadas. Ou com o milhão desviado pelo prefeito, ou dez milhões desviados pelo governador ou pela dignidade desviada de nossa alma. A poesia é apenas um detalhe na complexidade do universo.

5. E o amor, esvaído em lágrimas na secura dos desencontros! Como recuperar os olhos alucinados? Os loucos enluarados? Os homens que sonham? 

6. Hoje trago um desafio para cada um de vocês. Deste momento até o sem fim leiamos um poema por dia. Um único poema por dia é igual a um copo d’água na sede. Um poema lido é um dente não arrancado. Um poema é tão importante como escovar os dentes, tomar banho, comer pão, andar um pouco. 

7. Na infância da Antiguidade clássica até os períodos áureos da civilização helênica, os aedos cantavam ao som de harpas ou do vento, para invocarem a fertilidade na colheita ou a felicidade no casamento. Pitonisas adivinhavam o destino dos homens, invocando os deuses e entornando poesia. E essa poesia era originária do acaso moldada no exercício do sentir e do desejo. A primeira versão da poesia está próxima do ritual religioso. Com o tempo, a poesia ganhou importância de representar o sentimento dos homens em forma de arte, aí nasceram a epopéia e a tragédia. Depois, os poetas foram ampliando suas formas de expressão e conquistando outros gêneros poéticos. Muitos acham que Aristóteles formatou um conceito fechado de literatura e disso resulta que toda poesia precisa passar pelo crivo da poética e dos manuais de teoria literária. Ledo engano.

8. E o que significa então inspiração? Esta sempre foi uma suposta falácia imposta aos poetas para desidentificar a poesia do seu aspecto ritualístico inicial. E ao raspar a inspiração das tábuas poéticas, os manuais atribuíram ao trabalho com a linguagem o atributo estético necessário à fabricação do poema. Poesia, pois, é trabalho. Então se risca do mapa o sentimento em função do exercício. Suponha-se que todos possam estudar, compreender e realizar exercícios de poesia. O que fazer com a inspiração? E se pensarmos ao inverso, que todos podem aceder à inspiração e, de posse de uma linguagem qualquer, expressar a poesia, quem ficaria de fora do estatuto poético? Melhor seria rever a equação atual de que poesia é 99% de linguagem e 1% de inspiração. Não defendo aqui a ausência de conhecimento sobre técnicas do fazer poético nem opostamente a embriaguez onírica do devaneio puro e simples. Defendo a solidez da educação estética do homem, a depuração do espírito calcada na evolução do pensamento crítico, acumulado ao longo de uma educação formal e cultural pela leitura do mundo e pela leitura da arte. E a escola é o ponto de partida do conhecimento. 

9. Mas a escola hoje não está preparada para preparar o aluno nas condições propostas acima. Falta-lhe a infra-estrutura e um quadro de educadores esteticamente educados. E os formadores dos educadores, na Universidade, também esbarram no tecnicismo e nas lacunas de uma formação humanística e cultural deficitária. Os doutorados estão formando cada vez mais técnicos e cada vez menos humanistas; muitos repetidores de citações e menos pensadores de idéias próprias (o tal de: segundo fulano de tal). Nesse contexto não há espaço para a poesia nem tampouco para a formação do poeta. O resultado disto é uma grande quantidade de “poetas” sem uma educação integral (formal + estética). E o resultado disso são lamentáveis poemas. 

10. Se Vinicius de Moraes foi um grande amante e também um grande poeta, sua poesia é da mesma forma grandiosa e esteirada numa tradição lírico-amorosa da melhor qualidade, graças à formação humanística do poeta. Recobro um professor de língua portuguesa que tive no Curso de Letras. Sua erudição era fruto de sua educação escolar e de sua educação integral através do autodidatismo. Por que não se vêem hoje mais autodidatas como há trinta anos? O que fazer com essas gerações que se sucedem sem a menor intimidade com a língua e com a cultura do seu país? Como falar em valores num universo tão degradado e corrompido como este em que vivemos?

***
Só a poesia salva o amor e a si própria. O amor está em vias de extinção, a poesia, quase. Salvemo-lhes, salvemo-nos da inutilidade de todas as coisas.

*Escritor, Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande/ Campus de Cajazeiras e Editor da Revista Acauã.

Gildemar Pontes

Gildemar Pontes

Escritor e Poeta. Ensaísta e Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, em Cajazeiras. Graduado em Letras pela UFC, Mestre em Letras UERN. Doutorando em Letras UERN. Editor da Revista Acauã e do Selo Acauã. Tem 22 livros publicados e oito cordéis.

É traduzido para o espanhol e publicado em Cuba nas Revistas Bohemia e Antenas. Vencedor de Prêmios Literários locais e nacionais. Foi indicado para o Prêmio Portugal Telecom, 2005, o principal prêmio literário em Língua Portuguesa no mundo. Ministra Cursos, Palestras, Oficinas, Comunicações em Eventos nacionais e internacionais. Faixa Preta de Karate Shotokan 3º Dan.

Contato: [email protected]

Gildemar Pontes

Gildemar Pontes

Escritor e Poeta. Ensaísta e Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, em Cajazeiras. Graduado em Letras pela UFC, Mestre em Letras UERN. Doutorando em Letras UERN. Editor da Revista Acauã e do Selo Acauã. Tem 22 livros publicados e oito cordéis.

É traduzido para o espanhol e publicado em Cuba nas Revistas Bohemia e Antenas. Vencedor de Prêmios Literários locais e nacionais. Foi indicado para o Prêmio Portugal Telecom, 2005, o principal prêmio literário em Língua Portuguesa no mundo. Ministra Cursos, Palestras, Oficinas, Comunicações em Eventos nacionais e internacionais. Faixa Preta de Karate Shotokan 3º Dan.

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