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Francisco Cartaxo

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O velho e o tempo

08/10/2017 às 10h03

Ainda não chegou ninguém. Será que não vem nenhum? Já está na hora de ouvir a voz deles falando alto, fazendo algazarra, gaiatosos meninos, cheios de brincadeiras… Dedé leva tudo na esculhambação nem parece pai de família. Os netos… bem uns oito. Quantos são, Deus do céu, minha cabeça não serve pra nada nem guarda mais as coisas importantes da vida, que merda, esquecer o nome dos filhos… E os netos quantos sãomesmo? Oito, dez… e eu sei lá.

Maria, hoje é domingo?

Não ouve, não há quem faça ela me ouvir. Depois dizem que o mouco sou eu, mouco e demente, surda é ela. Não responde porque não escuta ou será que não está nem aí? Bem capaz. Esse povo de hoje não respeita os velhos. E falam em melhor idade… melhor idade. Idoso.Velho, não. Besteira. Melhor idade uma ova, isso sim. É muito bonito ficar aí falando palavras de carinho para agradar quem já está mais pra lá do que pra cá que nem eu, sentado numa cadeira nesta varanda espiando o povo passar na rua. Andando com as pernas.Que felicidade! Com as próprias pernas, sem depender de ninguém até para ir mijar no banheiro. Puta-merda, tomar banho pelos braços dos outros, caralho!

Menina, cadê você que não vem?

Melhor idade… até a porra da televisão perdeu a graça, o noticiário… quem disse que eu acompanho, vejo aquele locutor,todo bacana, voz de trovão, como é o nome dele? Sei lá eu lá tenho mais cabeça pra gravar nomes. Ah, as novelas, ora novela… putaria, isto sim, as sete da noite dentro da casa da gente essas menininhas quase sem peito se beijando se esfregando, só falta a gente ver a cena final feito puta do meu tempo,que faziamassim e assado. Tudo às claras. Ainda bem que mamãe já está no céu, senão morreria de novo. Ela não me deixava ler nemlivro tolo, como aquele da moça que espiava o cavalo se enxerindo pra égua…

Pega aí A carne na estante,Maria.

A idiota pensa quehoje eu quero comer carne… pergunte a Rosa, ela sabe onde está. O quê? Rosa morreu? Agoraendoidou de vez, Rosa já morreu? A idiota quer me fazer de demente, imagina… quando os meninos chegarem vou pedir pra botar essa mentirosa pra fora de casa.

Hoje é dia de domingo?

Segunda-feira… não estou dizendo, ora, segunda-feira… hoje é domingo, Maria, dia de alegria, os meninos aqui do meu lado fazendo algazarra, perguntando, e o remédio, velho, que mandei ontem, tomou direitinho? Que remédio, ela guarda tudo, esconde para vender e comprar cigarro, você sabia que ela é maconheira, sabia? Eu vi, ela fumando o baseado… assim, oh, chupando até queimar a ponta dos dedos, ei vi, vocês não acreditam, né, mas quando sua mãe chegar da missa ela vai botar tudo em pratos limpos. Eu mostrei a ela.

Cadê meus filhos que não aparecem.

Me deixam aqui o dia todo olhando o tempo ou de olho na tevê, sozinho, sem companhia, aproveite o resto de visão, pai,pra ver novela, homem, e as notícias…As desgraças do mundo, isto sim, para passar o tempo… passar o tempo, esperando a morte chegar, feito a música daquele cantor esquisito.

Como é o nome do cantor, Maria?

Hein, hein? Safadão?Ela só pensa em safadeza, deixa estar que jájá eles chegam falando alto, papai, sabe da última… ah, meus filhos, gaiatos, alegria da minha vida, a voz deles contando piadas, fazendo algazarra… Filhos enetos! É essa a alegria que me resta até a morte me pegar sentado nesta cadeira vendo o tempo passar.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim foi secretário de planejamento do governo de Ivan Bichara, secretário-adjunto da fazenda de Pernambuco – governo de Miguel Arraes. É escritor, filiado à UBE/PE e membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Autor de, entre outros livros, Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim foi secretário de planejamento do governo de Ivan Bichara, secretário-adjunto da fazenda de Pernambuco – governo de Miguel Arraes. É escritor, filiado à UBE/PE e membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Autor de, entre outros livros, Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras no cerco ao padre Cícero.

Contato: [email protected]

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