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Mãe de três filhos pede esmolas para cobrir crianças que dormem no chão em Sousa e estudante relata que trocou faculdade por comida

‘Nós queremos políticas públicas e não ações emergenciais”, diz Conselho de Segurança Alimentar da Paraíba após ouvir relatos dos moradores.

Por Diário do Sertão

25/05/2017 às 09h44 • atualizado em 25/05/2017 às 14h40

Comunidades ficam nas periferias da cidade de Sousa (Foto: MPF)

“Dotôra, veja se a senhora consegue arrumar uns paninhos para cobrir os meus filhos de noite, porque eles sentem frio. A minha casa, como a senhora pode ver, tem essas paredes abertas e eu uso esses panos para impedir que o vento entre de noite”. O apelo é de Maria Inês da Costa, 27 anos, mãe de três crianças, uma delas de colo. Ela, o marido doente e os filhos sobrevivem de esmolas que Inês pede. As três crianças não têm roupas. Passam o dia inteiro nuas e, à noite, dormem no chão, enroladas em lençóis velhos que Inês ganha quando se aventura, uma vez por semana, pelas ruas de Uiraúna – município vizinho, pedindo esmolas. Maria Inês é cigana e mora num dos ranchos de ciganos existentes na periferia de Sousa, município do Sertão Paraibano, localizado a 444 km da capital.

Quando não consegue uma carona para transpor os 37 km de distância entre Sousa e Uiraúna, Maria Inês pede R$ 10,00 emprestados ao cunhado e “paga uma condução” até a cidade vizinha. Ela conta que é difícil alguém oferecer-lhe comida. “Eu fico com dor de cabeça, às vezes com falta de ar, fico tremendo de fome, mas eu não tenho o que fazer, né? O jeito que tem é ir pedir mesmo, eu e meu esposo. Como ele sofre da coluna, não é todo dia que ele pode ir pedir também”, relata a jovem mãe, com os olhos fundos, visivelmente desnutrida.

A situação de miséria vivida por Maria Inês da Costa não é única na comunidade cigana de Sousa. Outros casos similares foram encontrados pelo Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Paraíba (Consea-PB) nos ranchos ciganos do município, onde se localiza a maior população cigana do estado. Segundo o presidente do Consea-PB, José de Arimateia Rodrigues França, esses casos já eram recorrentes há bastante tempo, desde 2011. “Quando nós realizamos as conferências regionais de segurança alimentar, entre elas a de Sousa, já se apontava a necessidade de visita aos ranchos, porque já eram reportadas agravantes agressões ao direito humano à alimentação entre os ciganos do município”, relata França.

O presidente do Consea-PB recorda que a violação ficou mais evidenciada quando, posteriormente, os ciganos fizeram um apelo muito forte, denunciando que as pessoas realmente estavam passando fome. “Na época, a prefeitura não dava resposta, o estado também não dava resposta, e eles não conseguiam entrar no Bolsa Família”, conta Arimateia. Em 2013, o Consea-PB levou o caso ao então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e à direção do Consea Nacional, o que provocou uma mobilização de vários setores e se conseguiu a distribuição de várias cestas básicas. O próprio MDS orientou o município de Sousa a dar uma atenção maior à inclusão dos ciganos no Bolsa Família.

A solução emergencial amenizou a situação de miséria nos ranchos ciganos, mas não durou por muito tempo e quando as coisas pioraram, os ciganos novamente pediram socorro ao Consea-PB. O Conselho, então, procurou o Ministério Público Federal (MPF) para que o órgão ajudasse a encontrar uma solução permanente. “Nós queremos políticas públicas e não ações emergências”, esclarece Arimateia França. “Fizemos isso por confiança no trabalho que o MPF tem desempenhado na Paraíba para o cumprimento da legislação e para alguns ajustes entre estado e municípios”, explica.

“Foi quando surgiu a ideia de articular uma rede de proteção aos direitos dessa minoria étnica”, relembra o procurador Regional dos Direitos do Cidadão, José Godoy Bezerra de Souza, o membro do MPF que ouviu do Consea-PB o pedido de socorro dos ciganos. A rede de proteção seria formada por diversos órgãos públicos que atuariam em conjunto com o objetivo de desenvolver estratégias para a criação e monitoramento de políticas públicas destinadas aos povos ciganos em relação à segurança alimentar, identidade, saúde, educação, trabalho, habitação e cidadania.

A partir de então, foram iniciadas as tratativas para articular uma parceria entre os órgãos com atribuição relacionada aos aspectos da questão cigana, e, em 29 e 30 de março de 2017, representantes de várias secretarias, programas e órgãos do governo estadual, órgãos federais, municipais e sociedade civil organizada, se reuniram no sertão do estado, em duas audiências públicas, nas cidades de Patos e Sousa, para ouvir as populações ciganas desses municípios e traçar planos para combater a miséria que aflige os ciganos. “Nós temos adotado como estratégia de atuação a parceria entre os diversos órgãos da administração pública e a sociedade civil”, afirma o procurador José Godoy. “É uma estratégia que tem dado certo porque o Ministério Público passa a ter um papel de condutor de diálogos para efetivação de políticas públicas voltadas à concretização de direitos humanos previstos na Constituição.

Estudar ou comer?
As audiências confirmaram os relatos do Conselho de Segurança Alimentar ao Ministério Público. A cada pedido de palavra concedido aos ciganos, surgiam cada vez mais claros os contornos de um quadro da grave insegurança alimentar e nutricional em que muitos passam fome ou são obrigados a pedir esmolas para poder se alimentar.

Um caso emblemático foi revelado, durante a audiência pública em Sousa, pela estudante Dalvania Pereira. Ela narrou que, desde os cinco anos de idade, tinha vontade de ser advogada. Já na 8ª série, começou a se interessar por matérias que não faziam parte do currículo, como Direito Penal, Direito Constitucional, Antropologia do Direito e Medicina Legal. Quando terminou o ensino médio, Dalvania fez vestibular para Direito e passou em segundo lugar. A estudante entrou na Faculdade de Direito em 2012, mas não pode continuar os estudos. “Minha faculdade está trancada há cinco anos por motivos financeiros, porque, ou eu escolhia a comida para dentro de casa, ou o transporte para chegar à faculdade. Infelizmente, eu tive que escolher a comida”, admitiu com voz embargada. “Eu não tenho vergonha nenhuma de falar: a minha mãe pede esmola”.

Ao microfone, a estudante fez um apelo: “Agora, eu peço ao Ministério Público Federal a oportunidade de emprego e educação para o meu povo, porque não queremos viver à margem da sociedade. Muitas mulheres ciganas não estão aqui hoje (na audiência) porque, infelizmente, elas ainda precisam ler mão e pedir esmola para sobreviver e trazer comida para dentro de casa. Eu espero que tudo o que foi dito aqui saia do papel e vire realidade”.

Dignidade nenhuma
O mesmo desejo também foi expressado por José Delmiro, num dos ranchos visitados pelos órgãos públicos, em Sousa, um dia antes da audiência pública. Conhecido como “Chatô”, José Delmiro mora com a mulher Natália e dois filhos numa casa de três cômodos apertados. No banheiro há apenas uma torneira próxima do chão. Não tem chuveiro nem vaso sanitário. “Quando a gente quer fazer xixi e cocô, a gente vai para o mato”, explica. “A minha casa não tem sanitário, não tem rede de esgoto, nem energia elétrica. A minha mulher dorme no chão com a minha filha de cinco anos, eu durmo numa rede, aqui na sala, e meu filho, de 14 anos, dorme no quarto”. Ele aponta para o banheiro e desabafa: “A minha moradia não tem dignidade nenhuma, não tem privacidade de nada, nem para um banho, porque nem porta o banheiro tem”.

A família de Chatô sobrevive com R$ 200,00 do Bolsa Família. Ele faz “bicos” (pequenos serviços realizados em troca de dinheiro) para complementar a mirrada ajuda que recebe através do programa federal. “Quando eu acho um bico, tudo bem, mas quando não acho, eu vou pedir esmolas. Bato de porta em porta. Ainda bem que tem gente de boa vontade e de bom coração que me dá o arroz, as vezes o vitamilho”, conta. No entanto, a mulher, Natália, conta que já ouviu muitas vezes as pessoas dizerem “Vai trabalhar, vagabunda! Vai procurar um emprego!”. “Mas como é que a gente procura se eles não dão oportunidade da gente trabalhar?”, pergunta indignada. “Aqui tem gente que sabe fazer todo tipo de artesanato, tem gente que faz doce, reciclagem. Cigano tem um dom dado por Deus, porque de tudo um pouco o cigano sabe fazer. Só que não tem oportunidade. Se a gente se juntar aqui, fizer um produto e for vender no meio da rua, eles não compram porque têm preconceito”, denuncia Natália.

Ao final do depoimento, José Delmiro fez um apelo: “Eu queria pedir ao povo do Ministério Público que veio nos visitar, que não venham só olhar e sim resolver nossos problemas. Eu peço a Deus que toque o coração de vocês ao lerem essa entrevista”.

Contas exorbitantes
Para agravar a situação, os ciganos de Sousa reclamam das altas contas de energia elétrica cobradas pela companhia de energia elétrica, Energisa. Durante a audiência pública, eles apresentaram várias contas de alto valor incompatível com os utensílios domésticos existentes nas residências. Como os ciganos não conseguem pagar as contas, algumas com valores que chegam a mais de R$ 500,00, a inadimplência têm gerado o corte dos serviços pela companhia de eletricidade. Os ciganos de Sousa também apontaram que os medidores de energia estão colocados lado a lado dentro de um quadro único, num espaço de vidro que só pode ser aberto com um código ao qual eles não têm acesso. Não há uma definição clara à qual residência cada medidor se refere, o que dificulta o acompanhamento e controle das medições pelos ciganos usuários do serviço.

Na mesma audiência, representantes da companhia elétrica esclareceram que as contas de luz da comunidade cigana apresentam dois débitos: o parcelamento de débitos antigos, mantidos com a Energisa, e a despesa atual, referente ao consumo do mês. Os dois débitos, conforme explicaram, são incluídos na mesma conta, e a soma dos dois constitui o valor a ser pago pelo morador naquele mês. Explicaram que essa é a razão de haver débitos tão elevados, em casas que não apresentam equipamentos ou serviços que os justifiquem.

Para se ter uma ideia da situação, Francisco Alfredo Maia relatou que a casa dele tem um quarto e ele utiliza uma televisão, uma geladeira e três lâmpadas. Quando a energia da residência foi cortada, ele procurou a companhia elétrica para negociar. “E o que me pediram para religar minha energia? R$ 6.500,00 de entrada, mais 140 parcelas de quase R$ 200,00, mais o consumo”, detalhou. “Aí eu falei lá para a moça que me atendeu: moça, com esse valor eu poderia colocar energia solar na minha casa, mas eu não tenho. Sou assalariado, ganho R$ 930,00”.

Compromissos
A audiência em Sousa durou cerca de cinco horas, durante as quais os órgãos presentes se comprometeram a prestar informações a respeito das ações tomadas para garantir a segurança alimentar das comunidades ciganas. Para Arimateia França, foi altamente produtiva a disposição do MPF de fazer as audiências públicas com visitas aos ranchos. “Isso qualificou muito as audiências, porque nem sempre as pessoas que estão necessitadas sabem descrever com tantos detalhes importantes a situação em que vivem. O conjunto da audiência pública é feito com a verdadeira percepção dos fatos e da situação vivida naquela região”, afirmou.

“Assim com os ciganos, nós do Conselho de Segurança Alimentar temos a mesma expressão de desconfiar dos resultados, mas estamos sempre cobrando e perguntando o que já foi resolvido dos encaminhamentos das audiências. Temos muita esperança que com essa percepção in loco, com os fatos relatados nas audiências e com a participação da sociedade civil, nós teremos, sim, algum resultado, porque estamos todos atentos ao papel e à obrigação de cada um”, alertou o presidente do Consea-PB.

Resultados
Os primeiros resultados da audiência em Sousa já começam a se delinear, pois várias secretarias que estiveram presentes nas audiências já estão providenciando o atendimento às reivindicações dos ciganos. Exemplo disso foi a reunião ocorrida em abril, na sede do MPF em João Pessoa, com a presença de representantes do Ministério Público Federal em Sousa, Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Paraíba, Procuradoria Geral do Estado, Companhia Estadual de Habitação Popular (Cehap) e Secretaria Estadual da Mulher de Diversidade Humana, para buscar a regularização da questão fundiária e de moradia.

DIÁRIO DO SERTÃO com MPF

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