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Médica reencontra bebê após 20 dias. Ela tinha entregue a um traficante de pessoas

A médica fugia da guerra usando passaporte falso e teve de ver filha de 1 ano embarcando em avião com traficante de pessoas para rumo incerto

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12/10/2015 às 14h06

Zizit e a filha, Maya, ficaram 20 dias separadas (Foto: BBC)

Sírios que deixam o país rumo à Europa muitas vezes dependem de traficantes de pessoas para alcançarem o seu destino. Mas é impossível saber em quem confiar e as coisas podem dar muito errado. Uma mulher síria acabou vendo um homem, cujo nome verdadeiro sequer conhecia, sair andando com sua filha de 1 ano. Essa é a história dela.

Zizit sabia que teria de deixar a Síria depois de ser alvejada por atiradores e uma bala atingir seu carro. Era médica num hospital em Damasco, antes de ser abordada por um grupo militante islâmico que a forçou a deixar o local e trabalhar para eles. Quando ela se negou, as ameaças começaram.

"Eles tentaram me matar duas vezes", diz. Temendo a segurança de sua filha, Maya, de 1 ano, decidiu que não tinha outra opção a não ser deixar o país. "Não fiquei feliz em deixar a Síria, amo meu país. Saí por causa do meu bebê, não por mim".

E assim começou a jornada de Zizit e seu irmão Ghassan com Maya rumo à Europa. Quando estavam na Turquia, o primeiro atravessador que encontraram prometeu levá-los à Grécia por terra por US$ 13,5 mil (cerca de R$ 50 mil).

Pagaram adiantado e esperaram que ele os buscasse no hotel. Mas, dias depois, concluíram que nunca o veriam novamente.

A família, então, buscou outro atravessador, que operava um pequeno bote inflável. Após uma travessia traumática, em que enfrentaram uma tempestade, finalmente chegaram à Grécia.

Todos conhecem os cafés frequentados por traficantes de pessoas em Atenas, então Ghassan foi encontrá-los. Levou um homem, que se apresentou como Abu Shahab, à casa onde ele e Zizit estavam.

O traficante ofereceu a Zizit um passaporte brasileiro falso e uma passagem aérea que a levaria a Suécia por 4 mil euros (R$ 17 mil). Ela teria que pagar outros 4 mil euros por Maya, mas havia um detalhe: mãe e filha não poderiam viajar juntas.

Crianças, disse ele, tinham que ser levadas por algum cidadão europeu, alguém que pudesse conversar com autoridades de imigração. Ele, sírio com cidadania sueca, fingiria ser pai de Maya e a levaria usando o passaporte sueco de sua própria filha.

Eles atravessariam a imigração primeiro e Zizit viria depois. Ela poderia embarcar no mesmo voo, mas teria que ficar longe de Maya para que a filha ficasse calma.

Zizit não gostou do plano, mas achou que não havia outra alternativa – sabia que tinha que agir rápido sob o risco de ficar sem dinheiro.

Não seria um voo direto à Suécia – é comum para atravessadores dividir grandes viagens em vários pequenos trajetos. Iriam, primeiro, à Itália, então a outro país não revelado até, finalmente, chegarem à Suécia.

Cinco dias após terem conhecido Abu Shahab, Zizit se preparou para o primeiro voo. Fez a mala de Maya, com leite, roupas quentes e um casaco. Colocou também uma boneca.

Abu Shahab foi até a casa para buscar a criança. "Ele deu um chocolate a Maya e disse: 'não tenha medo, estaremos no mesmo voo'", contou Zizit.

"Ela estava triste e chorou muito quando ele a pegou. Ela não gostava dele – ele era um desconhecido. Ele deu-lhe doces para acalmá-la mas ela não quis nada". 

No aeroporto, Abu Shahab e Maya passaram pela checagem de passaportes sem nenhum problema. Shahab ligou para Zizit dizendo que era a vez dela.

A mãe estava assustada e triste. A reação de Maya à separação deixou-a bastante abalada – mas as coisas iriam piorar. As autoridades perceberam que seus documentos brasileiros eram falsos e se recusaram a deixá-la passar. Foi, então, expulsa do local.

Mas Maya já havia atravessado e estava nos braços de um traficante de pessoas.

"Fiquei histérica. Fiquei louca", disse Zizit. "Tirei minha filha da Síria, arrisquei a vida dela no mar e agora ela tinha ido embora! Minha filha tinha ido embora. Maya tinha ido embora. Eu não sabia nem o nome dele (do atravessador) ou onde ele morava".

"Eu andava e andava. Minha cabeça parou, eu não conseguia pensar. Pensei que tinha perdido minha família. Envelheci uns 10 anos".

Ela não queria contar a autoridades do aeroporto que sua filha já havia passado pelo controle de passaportes ao temer que, expondo o atravessador, colocaria Maya em um risco ainda maior.

O irmão de Zizit, que esperava do lado de fora do aeroporto, tentou acalmá-la ao lembrá-la que teriam que entrar em contato com Abu Shahab, já que haviam combinado de pagá-lo ao chegarem na Suécia.

Seis horas depois, imaginando o pior dos cenários, o telefone de Zizit tocou. Era Abu Shahab, que estava num hotel na Itália. "Gritei e chorei. Ele disse: 'relaxa. Sou humano, amo bebês, não se preocupe'". Ele tinha dado banho em Maya, alimentado-a e colocado-a para dormir.

Ele não revelou em que cidade estavam, mas garantiu que Maya estava segura. Mandou uma foto tirada mais cedo, na qual ela dormia. "Eu também tenho filhos e cuidarei dela como se ela fosse minha", disse.

"Esse homem era legal, disse Zizit. "Fiquei aliviada e um pouco mais calma. Disse a ele o que tinha acontecido e ele me perguntou: 'onde eu deixo a sua filha? Preciso de alguém que você conheça – não a polícia ou um centro de refugiados'".

Ele não estava bravo, mas não podia ficar com Maya, disse a mãe.

A única pessoa que Zizit tinha em mente era uma mulher chamada Hasna, uma síria que era uma de suas pacientes e que agora vivia na Alemanha como refugiada. Entrou em contato com ela pelo Facebook.

"Implorei a ela, 'por favor, Hasna, você pode cuidar da minha filha até que eu chegue à Alemanha?'". Hasna prometeu cuidar de Maya se o atravessador conseguisse levá-la até Dortmund.

O traficante foi até lá, mas se negou a entrar na casa. Deixou a criança do lado de fora e telefonou a eles para que soubessem que Maya estava lá.

"Meu filho pegou a criança na porta e a trouxe para dentro", disse Hasna. "Quando eu vi essa pequena menina, me apaixonei por ela, como se ela fosse minha própria filha".

"No começo, Maya estava com medo. Depois de alguns dias, ela não saía mais do meu lado – se agarrava a mim em qualquer lugar que eu ia". Hasna enviava fotos a Zizit todos os dias.

'Perdi o controle'
Zizit ainda estava desesperada. "Estava com saudade de Maya e perdi peso", disse. "Eu não estava acostumada a dormir sem ela estar do meu lado, sem a cabeça dela no meu peito. Sentia muita falta dela, mas ao menos sabia que ela estava segura".

Ela não sabia como chegaria à Alemanha. "Eu nadaria se tivesse, me sentia forte".

Uma semana depois, um dos contatos de Abu Shahab lhe deu uma passagem para a Áustria e outro passaporte falso, desta vez um italiano. Disse se sentir mais confiante. "Não tinha medo de nada. Mesmo fazendo algo errado, e usando um passaporte falso".

O plano funcionou. Em Viena, um táxi a levou à estação de trem e um motorista mostrou-lhe onde comprar uma passagem para Frankfurt.
"No trem, estava tão cansada que dormi e sonhava com Maya". Mas a voz de alguém gritando "Passaporte! Passaporte!" a acordou. Assustada e trêmula, Zizit mostrou seu passaporte italiano falso ao fiscal.

Para a surpresa de Zizit, ele pediu que ela dissesse alguma palavra em italiano. Não sabia nenhuma. Respondeu em inglês, perguntando onde estava. Quando ouviu que aquela já era a Alemanha, ficou aliviada ao estar no mesmo país de Maya.

"Perdi o controle. Disse a ele: 'sou da Síria, não sou italiana. Por favor, me ajude – preciso achar meu bebê'". O fiscal respondeu que ela estava em segurança, que tudo estava bem e que ele a ajudaria.

"Os alemães são muito bons – eu era uma criminosa e estava ouvindo: 'não se preocupe, você está em segurança agora'. Na Síria, teriam te enforcado".
Ela foi multada em 500 euros por falsificação, interrogada sobre o atravessador e levada a um centro de refugiados em Munique – ainda a 640 km da cidade onde estava sua filha.

Enquanto isso, a polícia alemã agia com base nas informações que Zizit dava sobre o traficante e sobre Hasna. Já que ela não falava alemão e os policiais não sabiam árabe, a conversa foi em inglês e alguns detalhes se perderam na tradução.

O resultado foi que a polícia invadiu a casa de Hasna no meio da noite suspeitando que ela integrava uma quadrilha de traficantes. Eles, então, perguntaram a Zizit cinco vezes se ela realmente queria deixar Maya com Hasna. No final, concordaram em deixar a menina lá, mas deixaram claro que Hasna ainda era suspeita.

Zizit ficou no campo em Munique por duas semanas à espera de ser transferida para Dortmund, mas nada parecia acontecer. Então, certa noite, fugiu do campo e pegou um trem. E após 20 dias distante de sua filha, finalmente a reencontrou.

'Éramos estranhas'
Chegou à casa de Hasna por volta da meia-noite. "Olhei para Maya e notei que ela havia mudado, seu penteado estava curto e estava mais magra. Eu a beijei, ela acordou e começou a chorar. Éramos estranhas uma para a outra. Ela queria ir para Hasna, tentava chegar até a ela e chorava. Mas pareceu reconhecer a minha voz de alguma forma", disse Zi?it, que havia perdido cerca de 10 kg neste período.

Ela abraçou a filha por três horas e verificou suas marcas – "uma no pescoço e outra na barriga" – para garantir que esta era mesmo Maya.

Foram registradas novamente como refugiadas em Dortmund e iniciaram uma nova vida.

Meses depois, Hasna surpreendeu-se ao ser intimada a ir a um tribunal para enfrentar acusação de tráfico de pessoas. Tudo o que Zizit podia fazer era desculpar-se. Nas semanas seguintes, a questão judicial pairou sobre elas.

"Não dormi nesse período", contou Hasna. "Foi a primeira vez que tive de lidar com a polícia e a Justiça, mas sabia que não tinha feito nada errado".
No final, o juiz desculpou-se, elogiou a atitude de Hasna de ajudar uma amiga, e retirou as acusações.

Mãe e filha estão em Dortmund há um ano como refugiadas. "Maya está feliz, ela fala alemão – mais que eu. Não quero depender de ajuda. Quero trabalhar e pagar impostos, quero que minha filha seja educada e se torne uma médica como eu, ou qualquer coisa que ela quiser".

Zizit também está aprendendo alemão e espera chegar ao nível para poder atuar como médica no país.
Faria ela tudo de novo? "De maneira alguma", diz ela. E não recomenda a experiência a ninguém. "Não faça isso. Não venha como eu, é uma jornada muito perigosa".

G1 com BBC

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