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Mariana Moreira

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A tortura como lei

07/01/2022 às 16h37

Coluna de Mariana Moreira - (imagem ilustrativa).

Por Mariana Moreira

A lembrança desenha a menina inocentemente deitada no chão da sala enquanto o pai, numa rede, descansa da lida diária no campo. Entre pedaços de versos de cordel, retalhos de benditos e causos tantos ele conta as histórias de Ana do Livramento, em São João do Rio do Peixe, e o tratamento cruel que ela dispensava aos seus escravos. Quão constrangida ficava ao ouvir as narrativas do sofrimento impingido ao escravo Miguel, submetido a sucessivas sessões de torturas, no limite da privação de um copo de água, que o obriga a saciar a sede com a própria urina.

Essas memórias são alimentadas e atualizadas com a leitura do artigo Tortura e Morte no Rio do Peixe, de Frassales Cartaxo, ao comentar o livro de Wlisses Estrela, Senhores e escravos do sertão da Paraíba (1850-1888), resultado de sua dissertação de mestrado. Ainda não li o trabalho de Wlisses, mas, a partir do artigo de Frassales, vejo como é importante a pesquisa e o conhecimento para a compreensão da história, esclarecendo eventos e interpretando situações que, na leitura aligeirada do cotidiano, ficam borrados e difusos de noções antecipadas, conceitos forjados na espontaneidade de dia a dia e que trazem, com frequência, marcas e signos de preconceitos, de visões parciais e posições arraigadas e, muitas vezes, intransigentes.

Assim é que, na infância, as narrativas de Ana do Livramento trazidas por meu pai constroem em minha cabeça a concepção de uma mulher malvada, despida de qualquer sentimento de humanidade e de caridade cristã. E a projetava como alguém tenebroso, com a perversidade que a suspendia a condição de monstro. E assim, via a escravidão e todas as mazelas e crueldades que dela se narrava, como uma questão de indivíduos que, embrutecidos por ausência de formação cristã, se transformavam em torturadores, violentadores, feitores cruéis e abjetos.

Somente a compreensão da escravidão como um sistema político e econômico desenhado e executado pelos homens em suas interações e relações sociais e culturais me faz deslocar o foco de compreensão de Ana do Livramento e da escravidão. Leituras, pesquisas, entendimentos me trazem elementos de compreensão da escravidão como um modelo de organização da vida. Modelo que tem como ferramentas essenciais de sua possibilidade de existir a tortura do escravo, a sua negação de pessoa, o suplício dos corpos e das mentes, a desqualificação de saberes, crenças, cor de pelo do escravo, que também passa a aceitar a tortura como punição por sua desobediência, sua inferioridade. Uma aceitação que traz, no discurso religioso, um importante método de legitimação e de resignação a esta ordem. Uma ordem que, com certeza, registra as ações e atos de Ana do Livramento em novenas marianas, em missas e terços rezados, em preces e súplicas elevadas ao alto. Ora, seus escravos eram sua propriedade. Deles, a lei a ela assegurava a posse, o domínio e a tortura.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

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