Dicionário no banco dos réus
Esta semana, divulgou-se que o Ministério Público Federal de Uberlândia (MG) moveu ação contra os responsáveis pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. O processo nasceu de queixa de um cigano que considerou como racista e preconceituoso o verbete “cigano” daquele dicionário. Em seu arrazoado, o Procurador conclui por requerer a retirada de circulação daquele livro e, também, uma indenização de R$ 200 mil por dano moral coletivo.
Os ciganos, a gente sabe, são povos nômades de origem indiana, que ao longo de muitos séculos espalharam-se pelo mundo. Na Europa sofreram perseguições étnicas brutais, sobretudo na Alemanha de Hitler, como sucedeu aos judeus. No Brasil os ciganos estão em todas as regiões, conservando o que resta de sua cultura milenar, adaptada aos costumes locais, como fazem os poucos viventes no sertão do Rio do Peixe.
Mas afinal, que diz o Dicionário de Houaiss? Na versão impressa em 2009, o verbete “cigano” registra, entre outras, as seguintes definições: “aquele que tem vida incerta e errante, boêmio; vendedor de quinquilharias, mascate; que faz barganha, que é esperto ao negociar”. Até aí, não vejo nada de racismo. Não li a versão digital, pois a presenteei a minha filha, tradutora, que reside na Alemanha. Mas suponho ser idêntica à impressa. Contudo, em edição anterior, segundo os jornais, o Houaiss definia o povo cigano como “aquele que trapaceia, velhaco, burlador, apegado a dinheiro, agiota, sovina”. Daí o zeloso Procurador Federal retirou o fundamento para enquadrar a Editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss na lei anti-racista.
Antônio Houaiss foi intelectual dedicado ao estudo, ao ensino e à divulgação correta da língua portuguesa, tendo organizado projetos dos quais resultaram enciclopédias e dicionários de variadas feições. Escreveu muito acerca da nossa língua e ainda incursionou na crítica literária. Foi pioneiro na tradução para o português do complicado romance “Ulisses”, de James Joyce, obra fundamental para quem alimenta pretensões no mundo da ficção. Essas coisas e muitas outras levaram Houaiss a ser ministro da Cultura e presidente da Academia Brasileira de Letras. Morreu em 1999, um ano antes de concluído seu último grande projeto: justo o dicionário que o Procurador de Uberlândia quer levar ao banco dos réus.
Todavia, Nota conjunta, distribuída pela Editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss informa que as termos, supostamente pejorativos, tomados pelo Ministério Público Federal como prova de “intolerância étnica”, já foram retirados do Dicionário. Ufa, então está tudo resolvido, a menos que se insista em punir os responsáveis pelos danos morais aos ciganos. Se isso encontrar guarida na Justiça, cria-se um problemão: como distribuir R$ 200 mil com mais de 600.000 ciganos que vivem no Brasil?
P S – Esta crônica é dedicada ao saudoso Otílio Guimarães, leitor compulsivo, que lá do Céu deve estranhar não mais constar, sob o verbete “cigano”, nos dicionários modernos nenhuma alusão à tropa de burro ou de cavalo ou de jumento…
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