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Cleanto Beltrão de Farias

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A Missão (I)

17/03/2023 às 19h31 • atualizado em 17/03/2023 às 19h44

Coluna de Cleanto Beltrão de Farias

Por Cleanto Beltrão de Farias [1] – Missão é encargo, é projeto, é desígnio, é dever, ministério e compromisso. Missão é trabalho, resistência, sacrifício, vontade, desafio, unidade e luta. Aqui não se descartam o metafísico, o sobrenatural, o transcendente, a premonição, a sabedoria, inclusive popular, o insight, a inspiração e a aptidão de antever o que está por vir. Afinal, por que só acreditar no que é palpável, concreto, suscetível de apreciação pelos nossos cinco ou sexto sentidos? Missão significa também profunda responsabilidade e crença na habilidade humana de superar obstáculos. Além disso, representa liderança ou capacidade de fazer agregar iguais e assemelhados para realizar o plano missionário. Missão é política, é conjunto, direção, condução, governança. É transformação. É missão civilizadora.

Tanta substantivação, dileto leitor, feito folguedo de palavras, se faz necessária pela complexidade do tema. Trata-se de uma abordagem, a bem dizer apriorística, de um governo recém inaugurado, sob a perspectiva de uma missão a ser exercida, nos moldes acima descritos. Diga-se a propósito, um projeto de arrojada engenharia política iniciado, em seu estágio mais recente, no âmbito da articulação e composição pré-eleitoral, que redundou no triunfo da coligação Brasil da Esperança e na derrocada eleitoral do neonazifascismo, em 30 de outubro de 2022.

A expertise desta fase nova brotou com a movimentação de nosso timoneiro Luís Inácio Lula da Silva, para o centro e a leste do mar bravio, de ondas e ventos fustigantes, desestabilizadores. Mar tempestuoso do cenário político marcado pela bestialidade, destempero, despreparo, autoritarismo, extremismo, arrogância, vadiagem, engodo, violência, improbidade, retrocesso, intensa polaridade, poder desmedido e permanente ameaça à nossa democracia. Este deslocamento ao centro e à direita, de Lula e de seu entorno estratégico, trouxe por resultado a escolha de Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho como companheiro de chapa e de luta, na dura, árdua e intensiva campanha eleitoral que se seguiu. A este respeito, nunca se assistiu, em nossa história, tamanha movimentação de massas em prol de uma candidatura – pelo menos aqui no Sertão nordestino. A cada comício, passeata e carreata presenciávamos um caudal humano, uma onda vermelha, voluntariosa, tomando conta das ruas, praças e avenidas. Um mar de despojamento, de energia, de festança e de muita alegria. De multidões que clamavam por mudanças para a salvação do país. Sim, salvação! Porque é este o termo que bem simboliza o momento histórico ora vivenciado. Afinal, dois meses de novo governo já expõem o estado de desorganização, de destruição e de esculhambação – no bem dizer nordestino – a que submeteram o país nesses últimos quatro anos. E o que haveríamos de esperar se o resultado eleitoral tivesse sido outro?

O resultado adverso das urnas só não se deu por pouco, graças à experiência e habilidade de nosso piloto de impedir o naufrágio naqueles momentos decisivos de transição democrática. O fatídico e angustiante crepúsculo de domingo, 30/10/2022, indelével em nossa memória, é bem prova disso, do potencial perigo em que se encontrava a nação brasileira. A contagem dos votos do Centro-Sul, ao conferir vantagem momentânea ao adversário, suscitou um quadro de tensão e de profunda angústia, logo aliviado com a virada espetacular, na escalada da noite, proporcionada pela  chegança dos votos nordestinos, do povo aboiador e tocador de tambor à beira do mar. Ao medo do abismo se seguiu a explosão de alegria, o choro contido, contagiando e se espraiando por todos os nossos rincões, como uma catarse coletiva celebrando o fim da opressão. Afinal, o Brasil não mais suportava tantos erros e desatinos.

Por oportuno, não cabe aqui mitificar pessoa, porque este emblema distintivo – mito – somente cabe aos deuses. Porém, o resgate e a reconstrução do Brasil de hoje só se tornaram possíveis graças à perícia e às práticas adquiridas por Lula da Silva em seu ofício de bem comandar. Primeiramente na condição de torneiro mecânico e líder das lutas operárias do ABCD paulista e dos embates político-partidários que se sucederam. Nestes últimos, amargando duras derrotas eleitorais – 1982, para governo do Estado de São Paulo, e 1989, 1994, 1998, na condição de pretendente ao Palácio do Planalto. Após isso, como detentor de dois mandatos exitosos de Presidente da República (2003-2011). Sua capacidade de liderar, convencer, articular, negociar, perdoar e perseverar vem desse aprendizado da luta sindical e do sofrimento de trabalhador de fábrica – feito ferro malhado, quanto mais se bate mais forte fica – sem olvidar da sua saga pessoal como migrante nordestino e da injusta e infamante prisão (2018) por 580 longos dias. Por tais razões, nada melhor simboliza Lula do que aquela mão de cinco dedos, como evocação de seu exemplo e de sua história de trabalho e de luta em prol dos trabalhadores do Brasil.

É certo que a composição com Alckmin mereceu muita crítica e desconfiança, vindas sobretudo do interior da grande corrente partidária e ideológica que sustenta o nosso Presidente – o Partido dos Trabalhadores e demais legendas alinhadas. Porém, representou uma união estratégica, de temperança – é bom lembrar, uma confederação de nove partidos ou uma frente ampla, como queiram – num espaço exíguo e possível, de alto risco, elevada polarização e autoritarismo, fanatismo, antipetismo e anticomunismo. A propósito, a pecha do comunismo sempre é dada a todos os que aspiram um país mais justo, inclusivo, soberano, sem desigualdades extremas e sem violência, sem fome nem miséria, sem preconceitos, sem golpes. Um estado constitucional, social e democrático de direito, pleno, permanentemente estabilizado e civilizado. No fundo, um selo para esconder o profundo egoísmo de nossas elites atrasadas, de mentalidade colonial, traduzido por sua histórica resistência a qualquer tentativa de repartição e de humanização da riqueza nacional socialmente produzida – 1% da população apropria metade do PIB. Tudo em desacordo com a nossa Carta Magna que estabelece, no preâmbulo, que o Brasil é “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social […].” Um pouco mais à frente, o artigo 3º estabelece os objetivos da república brasileira: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  Portanto, a pecha acima referenciada não passa de um constitucionalismo à espera de efetividade.

Desta arte, retornando à crítica, o que é política, dileto leitor, senão a arte de conquistar o poder, democraticamente? Ou a habilidade de formular parcerias, momentaneamente indesejadas, mas visando alcançar benefícios futuros para o bem comum? Foi esse o mote, o espírito que consagrou a nossa custosa vitória. Daí ser impensável qualquer forma de retrocesso. Eis aqui o arcabouço de nossa proposta, desta ensejada missão.

Entrementes, paciente ledor, o projeto imaginado não é tarefa para um homem só. E nem poderia ou deveria ser, porque Lula integra a condição humana, carregando consigo suas debilidades, limitações e defeitos. Trata-se de um encargo que transcende o Presidente, as esferas de Poder, o Partido dos Trabalhadores e aliados e o próprio pensamento dito progressista. Mas, envolve a sinergia de toda a brasilidade, a junção de todos os democratas, o Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Ministério Público, partidos políticos, sindicatos, governadores, escolas e universidades, o pequeno, médio e grande produtor rural, os meios de comunicação, empresários, forças armadas, intelectuais e artistas, enfim, todos aqueles que aspiram por uma nação moderna, soberana, democrática, estável e civilizada. Não resta outro melhor caminho! E não mais satisfaz o simulacro da separação entre direita e esquerda. Evidente que nesta escolha sempre haverá dissenções e contradições como parte natural do jogo democrático e republicano, mas sem rupturas. Assim, não bastam tão só a união e a reconstrução do Brasil, mas, essencialmente, a nossa estabilidade democrática, permanentemente garantida e intransigentemente defendida, como uma projeção ou um legado a ser deixado para vindouras gerações.

Esta ensejada solidez democrática requer estabilidade institucional, ou vice versa, e o seu ininterrupto aperfeiçoamento. Nesse aspecto, cabe evocar duas instituições que se mostraram implacáveis na defesa da nossa normalidade democrática, no transcurso daqueles momentos mais difíceis e de grave risco de ruptura institucional: o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal Eleitoral, especialmente este último, na pessoa de seu presidente, ministro Alexandre de Moraes. Na condição de dirigente do processo eleitoral e como ministro do STF, Moraes enfrentou, intrepidamente, as afrontas criminosas ao nosso sistema de justiça, ao pleito eleitoral e à democracia – quem esquece do cabo e do soldado? – expondo-se perigosa e quase que solitariamente ao front miliciano. Cabe ainda assinalar a pronta ação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, na pessoa do ministro Flávio Dino de Castro e Costa, no fatídico 08 de janeiro, na contenção da turba terrorista e na imposição da lei e da ordem. Sem dúvida, merecedores de integrarem o panteão dos heróis nacionais.

Mas, como pôde uma vertente ideológica, em tão curto espaço de tempo, provocar  tantos estragos, tantos retrocessos, tamanhas inquietações e até mesmo dilacerar um país tão majestoso como o Brasil? Onde está a raiz da sua força? E por que a luta sem trégua ao bolsonarismo é imperiosa para a nossa estabilidade duradoura? Por certo, sem essas respostas, caro leitor, a presente análise resultará incompleta. Primeiramente, Bolsonaro não passou de um ventríloquo dos interesses obscuros de uma elite, que Jessé Souza (2017) bem classificou como do atraso. Nesses quatro anos de vadiagem, enquanto inquilino do Planalto, foi testa de ferro de todas as formas espúrias de exercício do poder (milícia, Faria Lima, agronegócio, regime militar etc.), já devidamente propaladas. Cumpriu esse papel de forma desavergonhada, cínica, despudorada, assumindo bandeiras que nenhum outro presidente da república ousou até hoje assumir. Um desbocado e aloprado, na melhor expressão da palavra. Sua psicopatia, que o isenta de sentir dor ou compaixão alheia, o fez soltar os cachorros, quase sempre contra as vítimas da indigna equação social brasileira. E o que dizer dos imolados da Covid? Este seu conservantismo, autoritarismo, militarismo, intolerância e falso moralismo, acentuados pelo seu despreparo intelectual, o fizeram resgatar o neofascismo e assumir a sua liderança. Decerto, há uma certa dificuldade de se traçar o perfil do bolsonarismo. Todavia, um só fato chama a atenção: a deficiência instrucional de seus adeptos e a carência de conhecimentos em história, filosofia, sociologia e política. Além desse, outros elementos se somam: a utilização das big tecks para a propagação da desinformação através das fake news, no sentido de desorientar e confundir pessoas, e vinculação da política com a religião, sobretudo com o neopentecostalismo e com o chamado cristofascismo. Por último, a identificação das forças de segurança com o bolsonarismo, que lhe emprestam apoio incondicional. Em suma, para compreender a versão cabocla do neofascismo, torna-se indispensável conhecer os traços gerais deste último, que a seguir delineamos: chauvinismo ou o apego às cores e aos símbolos nacionais; retórica populista e pregação dos valores tradicionais e morais da sociedade; ideia da corrução endêmica na sociedade; mudança radical da realidade; militarismo, culto à guerra e às armas; exclusão social como mal menor; elitismo econômico; tratamento do adversário político como inimigo; pregação de um regime autoritário; culto ao líder, ao mito e à personalidade; desprezo pela democracia liberal; mobilização das massas; apreço ao uso da violência para fins políticos; controle e aparelhamento do Estado; ideia do inimigo interno; e apreço ao golpe de estado. Enfim, a equivalência desses fatores à realidade presente não é mera coincidência.

[1] Cientista social, mestre e doutor em Direito, professor aposentado da UFCG e presidente do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores em Cajazeiras – PB.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Cleanto Beltrão de Farias

Cleanto Beltrão de Farias

Cleanto Beltrão é professor do Ensino de 3º Grau; doutor em Ciências Jurídicas e Sociais; professor aposentado da UFCG, com atuação nos campi de Cajazeiras e Sousa e presidente do Partido dos Trabalhadores de Cajazeiras-PB.

Contato: [email protected]

Cleanto Beltrão de Farias

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Cleanto Beltrão é professor do Ensino de 3º Grau; doutor em Ciências Jurídicas e Sociais; professor aposentado da UFCG, com atuação nos campi de Cajazeiras e Sousa e presidente do Partido dos Trabalhadores de Cajazeiras-PB.

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