A missão (II)
Por Cleanto Beltrão de Farias[1] – Pois bem, dileto leitor, retomando as características do bolsonarismo anteriormente aludidas, um documentário apresentado pela BBC News Brasil, nas redes sociais, em 04/03/2023, intitulado “Como a religião foi usada em movimento que culminou no 8 de janeiro” (https://fb.watch/l7KX_pxiLH/?mibextid=1YhcI9R), bem mostra a gravidade da manipulação religiosa para fins políticos. O vídeo já fala por si só. Mas, nele, pastores cristofascistas – na verdade, vigaristas, criminosos ou agentes infiltrados – sob falsa alegação de serem portadores de visões e profecias, convocam multidões de fiéis para participarem dos atos de 8 de janeiro. Tamanha maquinação só poderia resultar em fanatismos e delírios, sobretudo de pessoas em crise e castigadas pela condição social. Uma situação que bem evidencia o perfeito ajustamento da palavra “gado” à conduta desses adeptos e fiéis seguidores. Em verdade, sempre existiu parceria entre pentecostalismo e bolsonarismo, mas não no nível de radicalização como ora observado. O que não significa dizer que essa crença tenha sido tomada de todo pela dita ideologia. Mas, o que esperar de um presidente da república que propagava frequentemente a notícia, em suas mensagens eleitorais, que o opositor iria restringir a liberdade de culto, taxar e fechar igrejas e, por encarnar o mal, promover a destruição do Brasil? E o que dizer do aparelhamento do Estado com esta corrente de fé e da guerra religiosa constantemente fomentada pelo então presidente?
Dos fatores que deram sustentação ao bolsonarismo o mais importante foi o alinhamento incondicional das Forças Armadas e a questão militar. Pela frequência, tamanho, importância e intensidade. Um problema que se arrasta desde o advento da República, numa sucessão de sete golpes de estado e de constantes ameaças à nossa democracia. Destes, o mais emblemático foi o Golpe Militar de 64, em função da sua robustez e da impunidade concedida aos seus agentes pela Lei da Anistia, de 1979, e sua incidência nos desdobramentos dos dias atuais. De fato, a impunidade dos militares brasileiros é inusitada quando comparada aos casos argentino, chileno e uruguaio, onde os autores de bárbaros crimes cometidos foram levados ao banco dos réus. Na Argentina, generais da sangrenta ditatura morreram, exemplarmente, em celas de presídios. No Brasil, ao revés, o livramento de militares de crimes hediondos, cometidos durante a ditadura, representou um convite para novas incidências e atos de subversão contra a nossa solidez democrática. Nesse sentido, a apologia à tortura e a torturadores e a pregação de assassinato de opositores, em anos recentes, constituem o mais flagrante exemplo dos efeitos deletérios dessa impunidade.
Acresce ainda pontuar que o ensino levado aos nossos soldados, praças e oficiais das três armas, atento leitor, constitui o gargalo da questão militar porque impede a democratização e a modernização das nossas Forças Armadas. São diretrizes e conteúdos instrucionais obsoletos e desassociados da realidade fática – como exemplo, a doutrina da segurança nacional e a ideia de inimigo interno – formulados no contexto do segundo pós-guerra e no ápice da guerra fria, onde os Estados Unidos eram o centro e o xerife do mundo e as revoluções populares integravam a pauta do Comintern central. Daí a inadiável necessidade de atualizar e democratizar o ensino de nossas escolas e academias militares – inclusive das PMs –, retirando-lhe o ranço autoritário, arejando-o, modernizando-o, rejuvenescendo-o, abrindo-o, introduzindo valores humanísticos e democráticos, e estabelecendo pontes com outras instituições superiores de ensino. Sobretudo em se tratando de um país com as potencialidades do Brasil, cada vez mais apto a ocupar um lugar de grande destaque na comunidade das nações. Prova disso é a importância brasileira no BRICS, onde nosso país deverá presidir o maior banco de desenvolvimento do planeta. Logo, nesse novo cenário geopolítico multipolar, é inaceitável a visão de subserviência do Brasil e da América Latina aos interesses exclusivos dos EUA, na condição de “quintal” ou área imutável de influência. Para garantir esta soberania no exercício desses novos papéis, em prol da paz, da solidariedade e do progresso dos povos, o Brasil requisitará forças armadas modernas, preparadas, equipadas e respeitadas em todo o mundo. Porque, se assim não for, perdurará aquela dúvida atroz: nossas forças militares existem para garantir a nossa soberania ou representam meros exércitos de ocupação? Nesse contexto, não resta mais espaço para viralatismos, com todo o respeito aos nossos animais de estimação.
De nossas escolas e academias militares, a de maior destaque é a Academia Militar das Agulhas Negras, datada de 1792, com sede no município de Resende, no Estado do Rio de Janeiro. Esta escola de ensino superior, vinculada ao Exército Brasileiro, foi profundamente influenciada pela Escola das Américas (Schol of the Americas), criada em 1946 pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, tendo por objetivo, a partir de 1961 e no ápice da guerra fria, a formação da contrainsurgência anticomunista. Em 2001 trocou o nome para Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation). Em seus bancos passaram mais de 60 mil militares latino-americanos, dentre eles as mais truculentas lideranças das ditaduras aqui instaladas nos anos 60 a 80. Sua missão principal foi a cooperação dos países da região com as forças de segurança norte-americanas, no propósito de conter os partidos e os movimentos socias de esquerda, em ascensão no continente. Dentre suas matérias incluíam-se técnicas de contrainsurgência, intervenção militar, golpes de estado, técnicas de tortura e guerra psicológica. Não será gratuita ou mera coincidência a constatação de que lideranças militares bolsonaristas que integraram este finado governo são egressas das turmas dos anos 60 a 80 desta academia, conforme consta em seu banco de dados.
Outra organização intrinsecamente identificada com os militares e com a questão a eles inerente é o Clube Militar, instituição privada fundada em 1887, com sede na cidade do Rio de Janeiro, mas com jurisdição em todo o país. Este clube sociorecreativo, cultural e assistencial de oficiais das três armas, aposentados e ativos, tem sediado o ultraconservadorismo e os anseios protagonistas das Forças Armadas como poder político. Também, por ser depositário da filosofia da ditadura militar de 64, tornou-se um destacado aliado do bolsonarismo, tendo o seu dirigente máximo concorrido ao cargo de vice-presidente da república nas eleições majoritárias de 2018. Também saíram de suas fileiras os principais instigadores do golpe de 2016 que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff. Quem não se recorda das repetidas ameaças proferidas pelos generais Mourão, Heleno e Villa-Boas contra o Congresso Nacional, o STF, o STE, as eleições e a nossa ordem constitucional? E do desfile dos tanques fumacentos pelo Eixo Monumental, em agosto de 2021? E o que contar da celebração da ditadura de 64, agora em março, pelo Clube Militar do Rio de Janeiro, mesmo sem a anuência dos comandantes das três forças e do ministro da Defesa?
Pois bem, paciente ledor, este já longo arranjo de ideias e palavras, a respeito dos militares, denota a importância desta esfera para o alcance da missão aqui creditada, em curto, médio e longo prazos. Porque é preciso conhecer o objeto para saber atuar. Nesse viés, analistas abalizados da questão militar cabocla apontam alguns indicadores de crises, quarteladas e golpes, que precisam ser aqui desnudados. Primeiramente, como portadoras de um intenso autoritarismo e elitismo, nossas cúpulas militares reivindicam para si o protagonismo do poder da República, anseio que vem se prolongando desde a Proclamação e o golpe de 1889. Em outras termos, as elites de nossa caserna, de ontem e de hoje, não aceitam de bom grado o poder de governança da sociedade civil, nem muito menos um presidente da república formado nas lutas operárias. Assusta a essas lideranças a ideia de um mandato popular, democrático e progressista, mesmo que seja para cumprir os ditames da Constituição. Desta sorte, somente a eles cabem o amor e a defesa da pátria, o patriotismo e o zelo dos símbolos nacionais. Uma visão positivista, elitista e autoritária – auto composição pela força das armas – fundada numa suposta prerrogativa de tutela do poder civil. Ou seja, as Forças Armadas como detentora do quarto poder ou do poder moderador. Disso resulta o imbróglio, o conflito, porque o artigo 142 da Lei Maior em nada garante esta excelsa prerrogativa. A missão das Forças Armadas é, por conseguinte, defender a nação dos inimigos externos, as nossas fronteiras, garantir a paz, a integridade territorial e a nossa Constituição, bem como promover o nosso desenvolvimento. Para tanto, é preciso estar submetidas ao escrutínio público e ao controle da sociedade. A despeito, existe alguma nação civilizada, tutelada por militares, que não seja uma ditadura ou um regime autoritário? E o que falar de uma administração de governo tomada por oito mil militares, como sucedeu ultimamente no Brasil?
Em linhas gerais, a missão de estabilizar, permanentemente, a nossa democracia, consubstanciada nos preceitos da unidade e reconstrução, envolverá, sugestivamente, paciente leitor, as seguintes linhas de ação: i) punição com os rigores da lei de todas as ameaças à nossa estabilidade democrática, por vias de golpes ou rupturas institucionais; ii) combate às fake news, ao discurso do ódio e a todas as formas de aliciamento da informação; iii) pacificação e unificação do país; iv) criação de uma Frente Ampla em Defesa da Democracia, envolvendo parlamentares, governadores, prefeitos, partidos políticos e lideranças; v) instituição de campanhas publicitárias para promover os valores da democracia; vi) fortalecimento das redes sociais identificadas com a democracia e restrição aos monopólios da comunicação; vii) fortalecimento dos partidos políticos da base parlamentar do governo no âmbito do poder local; viii) fortalecimento do municipalismo; ix) fortalecimento do sindicalismo; x) promoção da comunicação social de natureza público-estatal; xi) difusão do ensino da Constituição no ensino fundamental, médio e superior, em caráter obrigatório e permanente; xii) combate a todas as formas de preconceitos; xiii) democratização, modernização e fortalecimento das Forças Armadas; xiv) reforma do ensino das escolas e academias militares; xv) promoção da integração nacional e regional; xvi) aprofundamento das políticas de inclusão social; xvii) combate às desigualdades sociais e regionais; xviii) fomento à integração latino-americana através do Mercosul, elegendo a democracia como pedra angular; xix) reforma da estrutura fundiária e incentivos à agricultura familiar; xx) redução da dependência ao transporte rodoviário de carga; xxi) defesa e garantia de nossa soberania energética; xxii) fortalecimento do Brics e a multipolaridade geopolítica; xxiii) reindustrialização do país; xxiv) investimentos maciços em educação, ciência e tecnologia; xxv) fortalecimento das relações interpoderes; xxvi) manutenção de um diálogo permanente com a sociedade e o estabelecimento de mesas de negociação; xxvii) democratização da política tributária; xxviii) fortalecimento das relações internacionais através de uma diplomacia ativa; e xxix) permissão à alternância do poder no interior da confederação ou da frente ampla, com vistas à preservação da estabilidade democrática.
Enfim, uma missão que estabeleça uma sociedade armada de valores civilizatórios permanentes, duradoura, de paz e progresso, que inspirou Darcy Ribeiro em O Povo brasileiro (2015, 3 ed., p. 332), a vaticinar, com sua genialidade, nos termos que se sucedem: “Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.”
Bravo!
[1] Cientista social, mestre e doutor em Direito, professor aposentado da UFCG e presidente do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores em Cajazeiras – PB.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
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