Calçadas de Cajazeiras (II)
Por Cleanto Beltrão de Farias¹
Em consonância com o que lavramos na parte inaugural deste ensaio, retratamos o agudo problema das calçadas de Cajazeiras, inerente aos perigos proporcionados aos transeuntes, pelos barrancos erigidos ao longo dos anos e pela sua utilização indevida levada a termo pelos proprietários dos imóveis lindeiros. Ditas ocorrências impelem os caminheiros para o meio da rua, levando-os a uma disputa de vida e morte com veículos de toda natureza. Que o problema se manifesta a partir do centro e se agrava à medida que nos direcionamos aos bairros. Por tal razão, tornou-se habitual presenciarmos idosos, mulheres grávidas, mulheres com carrinhos de bebê, crianças, pessoas com deficiência e pessoas comuns andando pelo asfalto ou calçamento. Que isto se deve ao fato de os proprietários dos imóveis vizinhos terem ocupado e se apossado das calçadas e fazerem delas o uso que bem entendem. Para a inteira compreensão deste problema, conceituamos calçadas e passeio público, suas qualificações, as responsabilidades pelas suas construção e manutenção, bem como apresentamos o seu disciplinamento essencial. Tudo confluindo para a concepção de uma cidade moderna, humanizada, saudável e sustentável. Por fim, mostramos a preocupação dos países desenvolvidos com a mobilidade urbana, a inquietação do Brasil com este tema a partir da Constituição Federal de 1988, sua regulamentação pelo Estatuto das Cidades (2001), pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012) e sua execução pelo Ministério das Cidades (2003-2019). Também apontamos a participação dos movimentos sociais neste processo e o aparecimento de estudos que vinculam a mobilidade urbana (melhores transportes públicos, ciclovias e calçadas acessíveis) à dignidade da pessoa humana.
Agora, dileto leitor, vencido o longo intervalo da primeira lavratura, motivado pela batalha eleitoral do último trimestre, trataremos das causas do estado caótico de nossas calçadas e das proposições para o seu equacionamento. Preliminarmente, a origem deste problema está na forma de conceber a cidade, por parte de nossos planejadores e dirigentes. Isto porque, a partir dos anos cinquenta, com o governo JK, a primazia no Brasil foi para o transporte motorizado, sobretudo o automóvel, cara mercadoria acessível a poucos mas que, pela sua densidade econômica, ditava as políticas urbanas e regionais. Afinal, abrir estradas, construir pontes, rodovias, viadutos, túneis, duplicar e asfaltar ruas, estacionamentos e terminais rodoviários era promover o desenvolvimento. De tal modo que, já nos anos setenta, as cidades brasileiras foram tomadas pelo automóvel, se encheram de carros e motos, de ruídos e poluição de toda ordem. As grandes urbes, na condição de édens dos automóveis, viraram um caos humano, insuportáveis. Contudo, os movimentos de reforma urbana dos anos oitenta, de inspiração humanística, ao projetar a pessoa como prioritária na vida das cidades, introduziram melhoramentos, sobretudo no item mobilidade, onde as calçadas ganharam centralidade. Mais recentemente, cidades como Curitiba, São Paulo, Campinas, São José dos Campos, Fortaleza, Belo Horizonte, Londrina, João Pessoa e Natal avançaram nesse sentido, estabelecendo normas sobre mobilidade de pedestres e desenvolvendo programas de melhoria de suas calçadas e passeios públicos. Isto porque a cidade que dá atenção aos seus pedestres garante o direito fundamental de locomoção – ir e vir. Além disso, a qualidade da urbanização de uma cidade se mede pelas suas calçadas, sendo elas o indicador de seu desenvolvimento (LAMOUNIER, 2015)².
Mas não foi o que aconteceu com a maioria das nossas cidades, incluindo Cajazeiras. Primeiramente, por ser esta de pequeno/médio porte, malgrado representar um dos principais polos na hierarquia urbana do Estado da Paraíba. Também por dispor de um desenvolvimento urbano tardio quando comparado a outros grandes centros do Estado. Nesse ponto, quando aqui chegamos, em 1984, Cajazeiras era uma cidade muito pacata, de ares tipicamente interioranos. Esta condição chamou a atenção de uma professora do Centro de Formação de Professores, também recém-chegada, para um fato curioso: o profundo silêncio das noites cajazeirenses. De fato, ele era tanto, que, no apagar das luzes, um zumbido intermitente tomava conta de nossos ouvidos. Mas, esse estado de sossego pleno perduraria por pouco tempo com a chegada da modernidade. Ruídos de trânsito, semáforos, asfaltamento, abertura de novas vias, novas construções, novos bairros, conjuntos residenciais, verticalização, expansão comercial e de serviços, bares e restaurantes, agências de automóveis, novas lojas, novos bancos, supermercados, academias de ginástica, shopping center, laser noturno, motéis e loteamentos passaram a fazer parte deste novo cenário. De sorte que, dos anos noventa para cá a terra do Padre Rolim passou a experimentar um crescimento notável – quem te viu quem te vê – se modernizando, se embelezando, assumindo ares de cidade de médio porte. Não é exagero dizer que, neste interregno, o espaço urbano de Cajazeiras triplicou de tamanho, proporcionado por investimentos diversos em educação, construção civil (“Minha Casa Minha Vida”), distribuição de renda (“Bolsa Família”), consolidando o seu polo educacional, comercial e de serviços. De modo que, nos dias atuais, representa a oitava maior cidade do Estado, em termos populacionais, e a quarta ou quinta em importância político-eleitoral, econômica e cultural. Especialmente em função de sua localização estratégica, numa zona de entroncamento (“fronteira”) da Paraíba com os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Ocorre que, neste quadro de transformação, as calçadas de Cajazeiras continuaram esquecidas. Nos gabinetes, até então nenhuma preocupação com a mobilidade dos pés, sandálias e sapatos. A cidade prosseguia planejada para grandes fluxos de rodas e pneus, como se fosse um autorama. Até hoje continua assim. De um lado, implantam o asfalto, com pompas e publicidade, comparável a tapetes vermelhos estendidos para desfile de automóveis. De outro, ignoram as pegadas, os caminhos e as trilhas dos homens. Não obstante ser o asfalto muito bem-vindo e acolhido, este deveria ser acompanhado por ações humanizadoras que melhorassem a vida dos pedestres, dos cajazeirenses e cajazeirados. Pelo menos no que determinam as leis de ordenamento da cidade.
Por tudo o que já foi considerado, várias foram as causas do desprezo às nossas calçadas e passeio público. Por certo, a mais importante foi a inação, a omissão, o descompromisso e a indulgência da Prefeitura Municipal de Cajazeiras para com o estado deletério a que chegaram. Excepcionando a grande área central e umas poucas situadas nesse entorno, nas demais áreas as calçadas continuam sinalizando perigo. Praticamente em todos os bairros e conjuntos – são quase vinte – o problema se mostra muito grave. Mas, esta responsabilidade não pode ser atribuída a uma só gestão governamental, mas a todas que se sucederam nesses últimos cinquenta anos. A este ofício devem ser agregados os demais poderes, como a Câmara Municipal e o Ministério Público. Afora o viés administrativo desta inação, desta indolência, também devemos acrescentar o viés político, que conformou o conchavo entre os lados evolvidos: de uma parte, o proprietário lindeiro que não queria ser importunado, cobrado, fiscalizado. De outra, o ente estatal encarnado no prefeito, que não pretendia desagradar, perder o compadrio e o voto, à maneira de um “laissez faire laissez passer” liberal – deixar fazer, deixar passar. E ainda concedendo-o liberdade para fazer o que bem entendesse, num espaço que não era seu, propiciando a ambientação perfeita para a conformação do caos atual.
Um exame na legislação básica do Município nos confere uma melhor compreensão para este processo acima aludido. A Lei nº 644/78, ou Código de Urbanismo e Obras, elaborada durante o governo de Francisco Matias Rolim, como exemplo, considera a calçada ou passeio como parte privativa da esfera particular (proprietários), ao defini-la como “parte da rua ou avenida pública particular, destinada ao trânsito de pedestres.”³ Traduzindo, em conformidade com a vontade do legislador, “parte particular da rua ou avenida pública”… Esta condição de pertencimento provavelmente explica o abstencionismo da PMC, uma vez que, por ser espaço particular, caberia a cada proprietário a responsabilidade de edificar e conservar “suas” calçadas, apesar da incumbência de a Prefeitura controlá-las e fiscalizá-las, combatendo as irregularidades através das devidas sanções. Importa sublinhar que era essa a tendência seguida pelo ordenamento federal, modificada pelo constitucionalismo de 1988 e pelas novas leis que se seguiram. Para alguns especialistas,(4) esta foi causa do atraso da modernização das cidades brasileiras no tocante à mobilidade dos seus pedestres.
Outras normas, como o Código de Posturas (Lei nº 667/79), o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (Lei nº 1.166/2006) e a Lei Orgânica do Município de Cajazeiras, de 04 de abril de 1990, em nada especificam sobre mobilidade a pé, acessibilidade e calçadas. Suas disposições são muito genéricas sobre tais matérias. Apenas a primeira delas, como não poderia deixar de ser, disciplina o uso do passeio público, coibindo sua obstrução e depósitos de entulhos, nos artigos 77 e 78.
Somente em 2015, como que uma luz no final do túnel, foi promulgada a Lei nº 2.317/2015, que instituiu a Política de Mobilidade Urbana do Município de Cajazeiras. Sancionada na gestão da então prefeita Denise Albuquerque de Oliveira, esta lei resultou da imposição da legislação federal e do então Ministério das Cidades, que estabeleceram uma série de medidas para orientar os estados e municípios, no sentido de modernizarem e dinamizarem suas acessibilidade e mobilidade urbanas.(5) Na lei supra citada está delineada a política pública municipal de mobilidade e acessibilidade, de modo que a inexistência de disposições legais não deve ser invocada pela administração local como justificativa para a sua inércia em relação à modernização das vias de acesso e passeios. Seja como for, não é demasiado concluir que, nesses quase oito anos de vigência da lei, nada ou quase nada foi feito nesse sentido.(6) Nossas calçadas, em sua grande maioria, permanecem intransitáveis. Até mesmo aquelas edificadas em construções mais recentes continuam eivadas de irregularidades.
De tudo o que foi assaz demonstrado, resta ainda uma pergunta: o que fazer? Primeiramente, não é um problema de fácil solução pelos vários anos acumulados de inação. Se foi permitido a cada proprietário construir, até hoje, suas calçadas ao seu alvedrio, não será tarefa fácil a Prefeitura Municipal de Cajazeiras modificar essa conduta e mentalidade, repentinamente. A correção das centenas de calçadas irregulares exigirá diálogo com os proprietários, para não se transformar num grave problema político. Assim sendo, uma série de medidas podem ser tomadas: seguir o figurino da Lei nº 2.317, de 12 de junho de 2015; elaborar um plano de recuperação de calçadas e passeios, inclusive a sua padronização; iniciar uma campanha educativa e de esclarecimento; capacitar as Secretarias de Planejamento e de Infraestrutura para essa missão; nomear uma comissão especial; traçar um diagnóstico; começar a solução do problema pelas vias de acesso de maior movimentação de pessoas; intensificar a fiscalização de obras e notificar proprietários; firmar parcerias com o Ministério Público, Câmara de Vereadores, Governo Estadual e Federal – Ministério das Cidades; apresentar projetos de financiamento a esta última entidade e projetos financiados por emendas do orçamento; abrir linhas de crédito para proprietários de imóveis cadastrados com calçadas irregulares; e isenção fiscal.
Uma coisa é certa, porém: o prefeito que se dispuser a resolver o problema acima colocado, jamais sairá dos corações de seus munícipes. Isto em razão de as calçadas representarem um importante sistema de transporte e de circulação e serem fator de saúde e bem-estar. A vida humana se concentra nas cidades e o mundo das pessoas se encerra nas cidades em que habitam e trabalham. Quanto mais inclusiva, democrática e bem projetada for uma cidade, mais saudáveis – e felizes – serão os seus cidadãos. O nosso direito de ir e vir começa no portão da nossa casa. Diante disso, a cidade que se preocupa com os seus pedestres realiza este preceito fundamental. As pessoas precisam caminhar pelas ruas e bairros sem nenhum obstáculo, com facilidade e segurança. Para que isto ocorra, as calçadas devem ser atrativas.
Ultimando essa abordagem, não pense seleto leitor que o problema aqui meditado é fruto do diletantismo deste ensaísta. Ao revés, o mundo civilizado está de olho nas condições de suas calçadas. Cidades como Londres, Barcelona, São Francisco, Nova Iorque e Berkeley – para citarmos apenas estas – constituem casos bem sucedidos de transformação de espaços de vivência e de locomoção de seus pedestres. Também o Brasil em muito tem evoluído nesta direção.(7) Em sendo assim, a Terra do Padre Rolim não pode continuar mantendo calçadas que impedem seus cidadãos de se locomoverem, com facilidade e segurança, de seus bairros para o centro da cidade. Será que isto é pedir ou querer em demasia?
[1] Professor do ensino superior e presidente do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores em Cajazeiras.
[2] LAMOUNIER, Ludimila Penna. Acessibilidade em Calçadas. Estudo. Brasília: Câmara dos Deputados, 2015.
[3] Lei nº 644/1978, Livro II: Das Obras. Definições. P. 6.
[4] Dentre estes, BATISTA, Alberto. Normas sobre calçadas e passeios públicos. Disponível em: Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5931, 27 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67246. Acesso em: 12 jul. 2022 e GABRILLI, Mara. Cartilha da calçada cidadã. Brasília: Senado Federal, 2016.
[5] O Ministério das Cidades elaborou em 2006, o Programa Brasileiro de Acessibilidade Urbana, devendo ser implementado pelos gestores municipais. Em 2015, publicou um caderno para orientar estados e municípios para implantarem o Plano de Mobilidade Urbana, o chamado PlanMob. Já em 2017, desenvolveu o Programa Avançar Cidades – Mobilidade Urbana, dispondo de linhas de financiamento para os municípios aperfeiçoarem sua mobilidade. No concernente à legislação, quatro importantes normas efluem desse importante contexto histórico constitucional: a Lei nº 10.048/2000, a Lei nº 10.098/2000, o Decreto nº 5.296/2004 e a Lei nº 13.146/2015. A primeira prevendo atendimento prioritário às pessoas com deficiência física, idosos com idade igual ou superior a 60 anos, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas por crianças de colo em repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos, instituições financeiras, logradouros e sanitários públicos e veículos de transporte coletivo. A segunda, estabelecendo normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação. A terceira, que regulamenta estas duas leis anteriores e, finalmente, a quarta lei que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, destinada a assegurar e a promover o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, objetivando à sua inclusão social e cidadania.
[6] Em verdade, alguma coisa foi ou está sendo feita, como as vias de acesso e a ciclovia da Estrada do Amor, de iniciativa do Governo do Estado, a ciclovia da Avenida Dr. Severino Cordeiro, e a melhoria, mas de maneira precária, dos canteiros centrais da Avenida Francisco Matias Rolim. Também, nos projetos de calçamento de novas ruas, financiados pela Caixa Econômica Federal, estão sendo construídas calçadas dentro dos padrões exigidos pela normas, desde que elas sejam inexistentes.
[7] Basta dizer que a cidade de São Paulo sedia uma Federação Internacional de Pedestres, e que a Associação Nacional de Transportes, ANTP, também sediada nesta metrópole, dispõe de uma Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade.
_____________________________________________________________________________
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário