Poesia na bagagem: O cancioneiro do esteta
Antes de identificarmos o conceito de antologia poética, torna-se necessário desmembrar o termo em si. Original e etimologicamente falando, o conceito de antologia provem do grego anthos, onde seu significado seria “coleção de flores”. Algo assim bem diferente no que se refere ao termo em relação à poesia.
Contudo, a palavra originada do grego tem um importante recurso em seu significado: a palavra “coleção”. Ou seja, do ponto vista artístico literário, antologia seria um conjunto, uma coleção formada a partir de diversas obras, diversos livros, diversas criações. Onde o ponto estético nada mais é que explorar uma mesma temática de uma mesma autoria ou de um determinado período. Centrando forças em uma raiz similar em todas as produções de uma determinada coleção, ou melhor, coletânea. Ou como diz Adriano Espínola: “há, em uma antologia, uma variedade de tons que oscila da indignação à ironia, da gravidade à leveza, da alegria à tristeza. Tudo urdido com naturalidade e maestria”.
Atentando para uma linha do tempo, Meleágro, um jovem poeta grego foi um dos primeiros executores do que se tem hoje como antologia poética, onde, àquela época, as sentenças definiam os poetas de então como “silvas”, “florilégios” ou colecionadores de “flores”. Estranho, não?! Por certo. Entretanto, a partir do século18 nossa aludida locução passou a ter sentido de “coleção”.
E é exatamente na área da botânica que o termo “antologia” começa a derivar a palavra coleção. Isso porque, nesta área científica, a sentença remete a uma “coleção” de flores, violetas…acácias. Senão, vejamos o Hai-Cai[1] que segue e é de autoria do escritor Carlos Gildemar Pontes, poeta de obra singular que será mais aprofundadamente analisado ao decorrer do presente estudo literário:
HAI CAI
No vaso partido
As flores perdem as cores
Perdem o sentido.
No que abrange a Literatura, uma antologia literária, em prosa ou verso, é formada a partir de uma coleção de textos escolhidos a esmero, seja por um determinado autor ou crítico literário, sendo essa obra organizada em um volume único ou posteriormente em novos tomos. Os poemas ou contos escolhidos se comportam em uma temática comum, remetendo-se a um determinado autor ou período histórico; onde um exemplo bastante seguido na atualidade está na junção de poemas, contos ou crônicas temporais para formatar um determinado apanhado de trabalhos literários. Em um passado próximo, Carlos Drummond de Andrade nos presenteou com um sem número de antologias quer de sua autoria ou da lavra de outros poetas seus contemporâneos. Já na atualidade temos um Luiz Fernando Veríssimo como exponencial que é reconhecido por seus muitos livros de antologias.
Apesar das inúmeras coletâneas de contos e crônicas existentes, é na poesia que as antologias se proliferam com voracidade ímpar. Selecionado, como já dissemos, por um determinado autor ou estudioso da Literatura, elas seguem um critério arbitral e individual. Uma antologia poética, no entanto, também pode apresentar uma coletânea de autores e não somente os poemas de um só. Para que essa junção se dê, basta que ele ou eles abordem uma temática comum ou relativas a um mesmo período de produção. Um exemplo clássico a ser dado são os dos movimentos literários ocorridos através de determinadas gerações. Leiam-se Romantismo, Simbolismo, Realismo e Concretismo para citarmos apenas alguns. A seguir, um exemplo de versos Concretistas do poeta Carlos Gildemar Pontes:
SERTANEJO
No gozo de tuas mãos sangrentas
Calejadas de enxada
E apertadas pela fome
Faz desabar
na terra
toda pancada
derivada
de
emoção.
Nas
ruas
pisadas
Nos campos sorvidos
está a sepultura
do
teu
suor.
Apesar de ser chamada de antologia mesmo sem haver comentários do compilador, o trabalho fica mais completo se ele o fizer, de forma a contextualizar os textos, classificando-os de acordo com seu gênero ou tema, e defender suas opções de escolha – isso pode ser feito, inclusive, em um prefácio, notas ou comentários que antecedam cada parte da antologia selecionada. Senão, vejamos o que diz o escritor e ensaísta Adriano Espínola na quarta de capa da coletânea Poesia na bagagem, do escritor e professor cearense Carlos Gildemar Pontes:
Em boa hora, Carlos Gildemar Pontes reúne seus melhores
poemas neste volume denominado Poesia na bagagem. De
pronto, o que percebemos é a variedade rítmica, formal e
temática dos textos. O poeta aqui vai do haicai ao poema
longo e confessional; dos versos rimados aos brancos; do
enfoque social ao íntimo; da natureza à feitura do próprio
poema. Também há, nesta antologia, uma variedade de
tons, que oscila da indignação à ironia, da gravidade à
leveza, da alegria à tristeza. Tudo urdido com naturalidade e
maestria.
Mas para que servem as antologias além de guardarem em seus bojos imprescindíveis e caras informações sobre determinado autor, autores ou épocas? Simples: eles servem para abrigar os textos mais importantes de determinadas gerações de pensadores, de estetas…de sonhadores!
Para esse fim e para o fim pedagógico, as antologias despontam de árduos trabalhos de pesquisa para se tornarem eternas. Além disso, são importantes para orientar corretamente as análises de obras de determinado escritor caso ele tenha produzido muitas delas, ou exista uma carência com relação ao tempo disponível para estudá-lo.
Apesar de suas vantagens, acredita-se que as antologias possam ser um obstáculo à leitura completa dos textos literários, ou seja, estudam-se as antologias, mas não se busca conhecer a obra integralmente. É importante, por isso, que os estudantes de Literatura que usam antologias para se posicionar quanto a um determinado autor ou estilo literário, não ignorem as obras por completo, e as respeitem. Pode-se dizer que, vista dessa forma, a antologia servirá como um guia para o leitor chegar até a obra integral.
PARTE 2
POESIA NA BAGAGEM: O CANCIONEIRO DO ESTETA CARLOS GILDEMAR PONTES
A poesia é a síntese do Absoluto. Parte indissolúvel da sua beleza. E o Absoluto é o todo, a completude, o elo das somas, o grau e a integridade da perfeição. Mas, como a poesia pode ser síntese de algo acabado, se o conceito de absoluto não está pronto, neste nível de compreensão das formas e das subjetividades? Simples, a poesia é o caminho da inteligibilidade do cosmos. É a harmonia em movimento, uma passagem que permite seres, como nós, atingirem o além da compreensão conceitual no nosso atual estágio de permanência, nesta evolução. CARLOS GILDEMAR PONTES
E eis que veio à luz nesse 2018 de intempéries, Poesia na bagagem, do escritor, poeta e ensaísta Carlos Gildemar Pontes. Nada mais salutar que poesia para os dias sombrios que o Brasil assiste, atônito, com seus habitantes a não crerem que o retrocesso que está acontecendo é verdadeiro, real e nada saudável. Ministérios serão extintos e a Cultura – prima pobre dos podres poderes – ficará à míngua, a mendigar, porta em porta, livros, filmes, peças teatrais e afins. Sorte a nossa termos seres especiais como Gildemar, que luta com unhas, dentes e golpes de artes marciais – sim! Além de poeta o homem é faixa preta de karatê –, para que os versos livres ou metrificados não percam a ternura jamais.
Acompanho a escrita do nosso poeta desde os tempos de acadêmico do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, quanto em 1984 ele lançou Lesco-lesco, a lida cotidiana. Recordo da estreia de Gildemar com um certo carinho e saudade, visto que eu contava apenas 19 anos de idade e era recém-chegado ao Bosque de Letras do Benfica. O lançamento, que na verdade não existiu de fato, pois à época e como eu ele ainda era um iniciante na feitura e costura da poesia, foi, no mínimo, diferente. Em tempos de “filipetas” e portas de banheiro ou de salas de aula, Gildemar saiu Bosque afora a escrever à base de pincel atômico a frase: “você sabe o que é lesco-lesco?”. Se chocou ou agiu de maneira interpelativa em outros pares não sei. No entanto, por onde quer que eu caminhasse, fosse indo às salas de aula, fosse nos banheiros, lá estava a pergunta a me rodear. Não teve jeito, corri ao velho “Aurélio” para saber o que diabos significa o termo em questão. Simples assim: trabalho pesado e diário; a dura faina de todos os dias para uns, ou ato sexual para os mais afoitos. Ri-me como ainda rio. Com vocês Lesco-lesco:
LESCO-LESCO
Qualquer coisa
Todo dia
Lesco-Lesco
Quem diria!
Qualquer coisa
Monstruosa
Lesco-Lesco
Em verso e prosa.
Qualquer coisa
Enigmática
Lesco-Lesco
Na gramática.
Qualquer coisa
Faz sentido
Lesco-Lesco
Meu amigo.
Toda coisa
Qualquer
Lesco-Lesco
Toda Poesia.
Como bom poema, este acima não especifica o todo pelas partes, deixando ao nobre ledor a análise dos versos em questão.
E Carlos Gildemar Pontes foi amadurecendo sua poesia como fruta saborosa tirada do pé. Como os bons vinhos, sua estética foi se afiando com o passar dos anos, fazendo-o nos brindar com um sem número de versos, uns mais bem acabados que os outros. Poeta de mão cheia e boa tessitura, Gildemar passeia pela Última Flor do Lácio com maestria ímpar. Quer seja no campo da metrificação e escansão, quer seja o da versificação livre.
De sua pena afiada brotam pérolas como “Noite”, poesia com a qual o crítico literário Adriano Espínola em tom de sabedoria pura disse ao Gildemar que com ela ele iria até o fim do mundo. Senão, vejamos:
NOITE
eu sou a noite
canto no ouvido dos bêbados
choro no berço dos mortos
racho cabeças inocentes
eu sou noite
sou escura e cruel
sou fria e de aluguel
sou as ruas e os becos
e também os homens secos
eu noite
mordo a língua dos culpados
cuspo sangue nos mercados
cato migalhas, mesmo assim
bordo fios de cetim
noite, água a escorrer nas coxias
afogando estrelas em precipício
levando a tormenta dos sonhos
lavando a bagana dos vícios
a noite não dorme
mas adormece os loucos
os homens são poucos
são apenas sombras
sou eu a noite
e varro os vultos medonhos
transformo meninas em feras
e como-as durante as eras
sou eu a mãe das corujas
das velhas por trás das janelas
dos gatos ligados calados
nos ratos coitados tão sujos
sou hoje e amanhã serei também
depois e além
planejo as notícias do dia
sou triste sou alegria
folia amante dos boêmios
alimento dos poeta que plantei
madrugada vivo a vagar
nos palácios ou nos covis
nas cantigas de ninar
nos alentos infantis
eu sou a noite
a conspiração dos detentos
a armadilha dos sonolentos
a tentação.
E Carlos Gildemar Pontes, leitor insaciável no dizer da professora Albetânia Bezerra Alves, caminha por seu Poesia na bagagem, nos servindo uma antologia que parece não ter fim tamanha é a qualidade de seu apanhado. Seguindo-se ao Lesco-lesco, a lida cotidiana, ele nos apresenta sua criação nas décadas posteriores, onde trouxe à vida Metafísica das partes, 1991; O olhar de Narciso, 1995. Livros nos quais já podemos notar um amadurecimento maior no tocante ao fabricar de versos, coisa típica dos homens de Letras.
Basta-nos notar o tom mais severo com que Gildemar trata de sua escrita, buscando e rebuscando a palavra mais correta e amiúde na construção de seu fazer literário. Coisa que ele executa com maestria na poesia carro-chefe de Metafísica das partes, de 1991:
METAFÍSICA DAS PARTES
parte considerável de nós
traz inúmera solidão desde menino
partes de nós ficaram pelo caminho
parte de nós uma nau errante
partes do coração distante
parte considerável de nós segue firme
partes se dissipam sem destino
parte das partes não voltará
partes da parte que fica seguirão
uma das partes nada sabe
outra parte nada teme
uma não tem leme
uma outra tem uma solução
outra uma imensidão
parte do coração errante
parte considerável de nós
se aquieta se aprofunda
partes se confundem
de todas as partes repartidas
nos perdemos
de todas as partes que ficaram
nós sonhamos
à parte olhamos parados
para partes que partem
deixando partes de nós
partidas.
Eis um Gildemar centrado e concentrado naquilo que sai de seus punhos marciais. Poesia engajada com a vida e a política social do Mundo e do País. Algo assim jovial, porém eterno. Sentimento puro ante à sequidão das fogueiras e arrabaldes da vida. Poesia tem que ser viva, nunca antes ou dantes morta. Poesia, vida e Arte maior. Compromissos que nenhum poeta que se preze pode deixar de carregar em seu saco de matalotagens, pois o poeta brasileiro, assim como os nordestinos, é antes de tudo um forte.
Saúdo, então, o meu amigo Carlos Gildemar Pontes, por quem tenho orgulho de cativar a sinceridade de poder escrever o que bem me venha à telha, certo de seu crivo será essencial sempre. Saúdo, pois, Poesia na bagagem, valentemente publicado pela carioca Editora Gramma, lamentando apenas que a tiragem de 500 exemplares seja tão curta ante o preciosismo poético que carrega o livro em questão. São trezentas páginas de um navegar ora por mares tranquilos, ora por mares de sargaços e bravios. Despeço-me, assim, com a poesia “Capitão-de-mar-e-rua”:
CAPITÃO-DE- MAR-E-RUA
cubro-me com o vento da noite
e só, durmo sob do vento o açoite
sonho com o amanhã em cama de neve
para fugir das torturas que me pousam leves
ó se o meu deus soubesse onde estou agora
me faria do alimento satisfeito
me faria sonolento do meu leito
que espero ter, antes da boa hora
mas aqui desta sarjeta, pobre e sujo
cubro-me com o manto da noite escura
e acordo com a fome, nobre amiga
esperando que ela não mais me persiga
bem queria esta no mar, ser um marujo
cair da proa e guardar no mar as amarguras.
Túlio Monteiro. Escritor, crítico literário e um apaixonado por Literatura. Fortaleza, terra de Iracema e Moacir, Novembro de 2018.
[1] Haicai é um poema de origem japonesa, que chegou ao Brasil no início do século 20 e hoje conta com muitos praticantes e estudiosos brasileiros. No Japão, e na maioria dos países do Mundo, é conhecido como haiku.
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