A cidade é o monumento do poeta
Toda cidade deveria ter um poeta para marcar a alma e o coração das pessoas e não deixá-la esquecida no tempo. E ela será pintada com muitas tintas. Drummond deixou sua Itabira como um quadro na parede. E como doía lembrar aquele quadro e o que ele representava. O poeta saiu para ganhar o mundo e não mais voltou, porque Itabira não era mais a mesma e não podia domar a sua alma inquieta, mas foi imortalizada nos seus poemas.
O poeta não cabe numa cidade apenas, porque ele é do mundo. E feliz da cidade que tem um poeta que lhe canta as pequenas coisas de guardar na memória. Assim, chamo a atenção para Cidadezinha qualquer, livro de Abraão Vitoriano, que inspirado em Drummond, pintou quadros da sua Santa Helena e os expõe na parede para que os moradores possam se orgulhar. Sim, pois todo itabirano tem orgulho de Drummond e colocou Drummond em sua parede. E todos sabem que ali nasceu sua estrela maior.
O livro de Abraão é dividido em duas partes: “Retalhos”, de prosa poética, e “A linha”, de poemas. O poeta apresenta seu mundo e chama o leitor a costurar, juntos, a poesia nossa de cada dia. Mundo que está exposto nos objetos que guardamos, nas lembranças que tecemos, nos retratos dos que se foram. Um dia, Santa Helena haverá de reconhecer este moço que teima em fazer poesia na aridez de um tempo em que as pessoas se esmurram por canalhas, em que as pessoas se odeiam por pobres políticos sem sentimento e sem poesia. Sim, a poesia não combina com este tipo de gente. Por isso, o poeta invoca as memórias coletivas nas cenas simples que guardou para o poema. E abriu as páginas para pessoas que olhavam para o céu e contavam estrelas, os meninos corriam despretensiosamente na calçada da igreja, tudo tinha cor, tudo era alegria.
Lembro um tempo em que ver o trem passar enchia nossos corações de alegria. […] A inocência brotava em pétalas. O mundo tinha cor: verde-esperança. Saudade daquele tempo que ser criança era assinar o estatuto de ser feliz. […] São esses retalhos que costuram hoje a minha vida. (Vitoriano, p. 3)
Neste texto inaugural do livro, o poeta Abraão Vitoriano anuncia o tom memorial que irá desnovelar nas páginas seguintes. E não fogem aos seus olhos o passarinho, a chuva, os velhos, o vento a varrer calçadas e tanger cortinas, o trem, “a professora que soletrava felicidade”(p. 5). Na Infância querida, o poeta não lembra só das imagens, mas dos sabores, das luzes e sombras, do apito do trem. Parece que o apito do trem na cidadezinha do interior tem o papel de causar palpitações. E todos correm para a estação em busca de novidades. É o trem o mensageiro. E os meninos não esperam notícias, esperam o trem, a esperança de ferro que vem todo dia levantar poeira e chamar atenção para uma cidade adormecida no sol e embalada à noite pelo Vento Aracati. Para o menino poeta e para os meninos descalços de preconceitos e ordens absurdas, o trem é uma libertação, porque põe todo mundo a correr. E os meninos olham para o maquinista como um herói, porque ele dirige aquele monstro de ferro que traz a esperança para muita gente.
O papel dos avós, a contar histórias; das mães, a regularem meninos; dos pais severos ou dos pais ausentes que arribam para São Paulo em busca de sonhos; das noites de São João, tudo é motivo para a recordação e para o registro sensível e, muitas vezes, seco, como o tempo que enrugou a cara dos velhos. O poeta guarda histórias antes de soltar poemas. Sobre a mesa, retalhos de vida costurados pela máquina singer de sua mãe. E parece que em todas as casas tinha uma máquina para ensinar os meninos a pedalar e a dirigir no seu carro imaginário.
As travessuras dos meninos e as peraltices dos moços, em flor da idade a descobrir o beijo, o desejo de ver de novo, as horas contadas que são eternas, tudo faz parte deste universo de Cidadezinha qualquer. São textos de uma riqueza que parece estar nos cortes feitos no tempo para encaixar uma emoção que insiste em revisitar o poeta. E a vida não é assim mesmo, feita de retalhos que nos visitam?
Na segunda parte, o poeta puxa o freio de mão do leitor e, em textos curtos, dá uma pausa para um copo d’água e nos coloca diante de uma poesia altaneira, que reafirma as suas Pétalas raras, título do seu primeiro livro, que tive a honra de prefaciar. E lá, como aqui, os textos não se expandem, não são grandiloquentes na forma, porque antes, buscaram a síntese na palavra substantiva. O segundo livro, Estado de graça, é uma passagem para este, anúncio do que veio antes e do que virá.
Cidadezinha qualquer é qualquer cidade que guarda sua poesia no fundo dos baús, no oitão das igrejas, no ferro a brasa encostado no quarto de guardar lembranças, no ninho em cima da cumeeira, no pé de juazeiro que insiste em nos lembrar da esperança, mesmo quando a seca quer nos roubar a poesia, ele estará lá, no fim da rua, abrigando os meninos que não sabem mais brincar de rodas, porque suas cabeças agora rodam no diabo destes celulares.
Os leitores de Cidadezinha qualquer terão a certeza de que o mundo sem poesia não terá o menor sentido. A poesia revela o que somos em essência. E, como disse o poeta em sua “Fome”, p. 31: “Nunca mais me escondi de mim”.
E Cidadezinha qualquer nunca mais se ocultará de si. Tomará rumos desconhecidos. Para onde irá? Além dos trilhos da extinta estrada de ferro? Cidadezinha Qualquer irá onde o poeta a levar.
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