A vida dura dos sertanejos
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, já dizia o autor de os sertões, Euclides da Cunha. Realmente, para quem convive diariamente com os sertanejos, essa máxima se confirma. Eu, particularmente, afirmo, peremptoriamente, que a vida do povo do sertão é uma vida dura, cheia de sacrifício, de espinhos, de dificuldades, de pelejas. Com toda essa cruz pesada, essa gente não esmorece, não se entrega, igual a mandacaru em tempo de seca.
É aqui, neste chão seco, torrado, rachado, sol causticante e calor insuportável, que exerço meu ministério sacerdotal. Um contexto de atuação pastoral marcado pela dor do sofrimento. A seca é uma das maiores causas dessa realidade de via crucis. E ao longo de minha atuação nessa região, tenho presenciado cenas dramáticas que fizeram sofrer meu coração de pastor: Cenas de fome, de sede, de desespero, de grito por socorro, de abandono pelos poderes públicos, de revoltas e de morte.
Nunca vou esquecer um fato marcante acontecido na cidade de Diamante, na seca de 1998. Estava no banho, quando ouvi um barulho ensurdecedor. Sai correndo e perguntei aos vizinhos: o que está acontecendo? Responderam-me que os agricultores correram até a delegacia para saquear várias feiras que lá estavam. E mais: “padre, corra para lá, pode haver derramamento de sangue. Peguei o carro e saí em alta velocidade.
Ao chegar ao local, lá estavam os famintos e sedentos agricultores prontos para invadir a delegacia. Do outro lado, estavam vários policiais, fortemente armados e prontos para agir, energicamente, contra aqueles pobres pais de famílias revoltados, que clamavam por pão. Nesse cenário tenso, quase em pé de guerra, fiquei entre os agricultores e os policiais.
Usando de minha autoridade religiosa, falei: Tenham calma, pelo o amor de Deus. Fiquem ai, vou chamar o prefeito.O prefeito encontrava-se no posto de saúde(era médico).Entrei no referido recinto, meio nervoso, e disse : prefeito, vamos à delegacia, pode haver derramamento de sangue, entre no meu carro. Chegando lá, após dialogar com os agricultores e policiais, a situação foi contornada.Essa lembrança amarga tornou-se indelével na minha vida de padre do sertão.
Ao escrever essa memória histórica, meus olhos ficam lacrimejados, pois, ficaram gravadas essas tétricas palavras dos agricultores: “padre, nós estamos com tanta fome, nossos filhos e nossas mulheres ficaram em casa esperando por comida. Padre, socorra a gente, não deixe nós “passar” fome, pelo o amor de Deus, padre! Tenha piedade de nós, padre”!. Meu coração estremeceu. Interiormente, chorei!
Todos os dias, converso com meus irmãos sofridos do sertão. Tenho enorme prazer em conversar com eles. Ouço atentamente suas palavras comoventes, suas histórias chocantes, revoltantes. Os mais velhos falam do seu passado dramático e os jovens, de suas perspectivas de futuro.
Ouvir meus irmãos sofridos, meus paroquianos, me dá suporte moral para falar aos meus leitores sobre a vida dura do homem e da mulher da região sertaneja. Não falo porque ouvi falar, ou vi pela TV, mas sim, como testemunha ocular, como cristão que convive dia e noite com esses filhos sofridos de Deus, neste pedaço de chão nordestino.
Vou elencar, para refrescar nossa memória sertaneja, e criar em nós, senso crítico, o que ouço dos meus irmãos sofridos e angustiados, destas terras do chique-chique e mandacaru:
“padre, a gente já sofreu tanto. Já teve tempo que a gente comia preá, camaleão, pra matar a nossa fome”.
“Olha seu padre, eu tive oito filhos, pense num sofrimento danado. Eu me levantava cedo para moer milho, pense como era ruim moer milho. O moinho era pesado demais pra gente puxar. Ah, como eu ficava tão tonta, meu Deus”!
“padre, teve uma emergência na década de oitenta, ai o governador botou as mulheres pra trabalhar na emergência. Eita governador ruim, seu padre. Agente saia de madrugada. As mulheres levavam os filhos pequenos, e lá davam de mamar; ’.
“As mulheres, na emergência, carregavam carroça, arrancavam mato. Era uma verdadeira humilhação, no meio de tantos homens. Um sol danado. Tinha mulher, padre, que desmaiava, mas eram obrigadas a ta lá, senão perdia a vaga”.
“Eita tempo de sofrimento nas emergências. Era tanta humilhação. A gente sofria tanto, seu padre. Sorte de quem arrumava uma vaga pra trabalhar na emergência. “A gente se humilhava ao vereador ou ao chefe político. “A gente madrugava na casa desses homens para conseguir uma vaga na emergência”.
“Esse governador foi ruim demais pra mulheres. Ele não tinha pena das pobres mulheres. botava pra trabalhar no pesado mesmo. Ai da mulher, que não pegasse no pesado”.
“Olha, padre, a gente era chamado de cassacos. Quanto chegava a sexta, a gente ganhava um saco cheio de rapadura, farinha, um tal de arroz chamado buga e colocava na cabeça.A gente andava um dia todo para chegar em casa. A gente andava era a pé ou de jumento. Eita sofrimento”!
“Tive onze filhos. Sofri muito. A gente vivia da roça, nada tinha em casa. Quando chegava a hora do almoço, era um deus nos acuda. Ah, meu Deus, quanto sofrimento”!
“Meus filhos foram embora para são Paulo em busca de emprego. Faz anos. Nunca mais voltaram. A gente chora todo dia com saudade deles”.
“Aqui no sertão, padre, a vida é dura demais, pobre sofre demais”
“Em tempo de política, não falta político nas nossas casas. Eles andam aqui direto. Eles prometem tudo: emprego, remédio, bolsa de estudo e muita coisa. Depois que passa a eleição, esses diabos desaparecem e nem conhecem mais a gente”.
Uma jovem me falou: “aqui no sertão é tudo difícil, quem tem condições vive bem e quem não tem, vive mal”.
“sei não, disse um rapaz, acho que vou embora pra são Paulo, aqui é muito difícil pra viver. Vou tentar arrumar emprego no sul. Se eu ficar aqui, vou ficar velho e não arrumo nada na vida”.
“A vida aqui e dura, não é mole não, padre. A gente vive vida de cão”. Ninguém “olha pra nós, só em tempo de eleição, a gente é olhado”.
“Olha, seu padre, a gente anda hora e meia para apanhar água num açude do Rio Grande do Norte.A gente sai quatro hora da madrugada.Quando o jumento é lerdo, a gente gasta mais de duas horas”.
“Padre, me dê uma ajuda, eu tenho cinco filhos. Meus filhos estão passando necessidade”.
“Olha, padre, o bolsa família não dá pra nada, só para pagar água e luz”.
“Tem gente na capital que fala assim, seu padre: esse povo pobre do sertão, agora vive bem, come bem, porque ganha o bolsa família. Agora, eu pergunto, seu padre, que diabo faz uma pobre mãe carregada de filhos com noventa reais? Será que esse povo, que diz isso, vive com esse dinheiro todo? Será, padre, que esse povo viveria no sertão, comendo do bom e do melhor, com esse dinheiro do bolsa família”?
“Neste ano , plantei , fiz replanta, não veio a chuva e tudo se perdeu, não tirei nada. Estou comprando feijão,arroz,milho.”
“Eita secona, vai pegar fogo! Se Deus não olhar pra nós, no ano que vem, a situação vai piorar mesmo”.
Esse povo, tantas vezes esquecido, abandonado pelos poderes públicos, tratado como massa de manobra pela elite política, vítima de cabresto eleitoral, nunca teve vez e voz. Além de ser vítima da injustiça social era, e continua sendo, obediente, submisso, humilhado aos grandes, aos poderosos, aos detentores do poder político e econômico. Motivo de tudo isso? Dependência econômica. A cultura da dependência o fez assim. Infelizmente.
Os sertanejos precisam dar um grito de libertação. Essa libertação dar-se-á, a partir do momento em que todos tomarem consciência de sua cidadania, de sua dignidade. Para isso, como padre, tenho feito ao longo de minha jornada pastoral, todo um trabalho de politização, ou seja, de conscientização, apesar de não surtir tanto efeito esperado. E haja paciência histórica!
Quando os sertanejos tiverem consciência de sua cidadania começarão a lutar, com garra, determinação e coragem, pelos seus direitos inalienáveis. Assim sendo, não aceitarão ser tratados como boiada ou massa de manobra. Será o tempo de sua libertação.
Neste contexto histórico de dor e lágrimas, eis a minha missão de pastor: contribuir para libertação do meu povo sofrido.
Twitter: @padredjacy
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