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Mariana Moreira

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Apenas uma manchete!

22/01/2021 às 08h26

Coluna de Mariana Moreira

Por Mariana Moreira

O rosto estampado nas páginas de jornal camufla o humano e revela somente a violência que se naturaliza na identidade: ex-presidiária. Uma designação que encerra estigmas, preconceitos. Reinventa formas e maneiras de trato, ou destrato com os afetos, desejos, necessidades, sonhos.

E lá estava o rosto estampado dando forma e substância a manchete: “mulher é morte com vários tiros em plena via pública”. Quem era, apenas um nome: Joelma.

Conheci Joelma no Presídio Feminino de Cajazeiras onde, desde 2013, desenvolvo um projeto de extensão que a pandemia interrompeu em 2020. Por meio das atividades extensionistas o projeto busca criar espaços para a constituição de uma compreensão sobre os direitos humanos das mulheres presidiárias na interface entre direitos humanos, cidadania e relações de gênero, considerando o contexto prisional feminino.

E porque Joelma ganha destaque nestes escritos meus. Tenho profunda dificuldade em memorizar nomes, mas gozo da facilidade de apreender as pessoas em suas ações e gestos. Assim, em vários momentos de atividades realizadas no presídio Joelma estava presente. Mas não apenas presente, participante. Envolvendo-se nas discussões, participando das questões propostas. Instigando outras presas ao envolvimento com o debate. Muitas vezes, em atividades lúdicas, políticas, artísticas ela era uma das principais protagonistas.

Outro registro de Joelma emerge na dimensão da tragédia que caracteriza a vida prisional neste país, sobretudo, nos presídios femininos onde a relação de gênero se escancara e expõe a compreensão de que o crime é masculino. Para as mulheres, o delito é um demérito a sua natural condição de docilidade, fragilidade, amabilidade.

Trazendo como mote a questão da saúde e de como os serviços de saúde imprimem esta configuração de distinção, a atividade anota o relato de Joelma, que, após reiterados apelos, sem escuta, pelo atendimento odontológico para redimir a angustiante dor de dente que a afligia a dias, ela, tendo como ferramenta apenas um rudimentar alicate de unha, extrai o dente a seco. Somente uma hemorragia intensa consegue a atenção para um atendimento médico.

E assim, entre relatos e dramas Joelma, como tantas presidiárias do Presídio Feminino de Cajazeiras e de tantos outros Brasil a fora, segue a maldição socialmente inventada de condenação a invisibilidade, ao ostracismo social, político, cultural, humano. Nada são! Apenas criminosas que macularam as sacrossantas relações sociais e transgrediram a natural determinação do feminino gentil, sereno, submisso.

E Joelma é apenas uma manchete de jornal, sem autonomia, identidade, risos, cores, sonhos.

E importa a vida de quem saiu do calabouço apenas como mais um número estatístico arremessado no mundo sem letras, sem saberes, sem sonhos, alinhavando apenas abortos de viver?

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

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