A banalização do ódio
Vivemos em tempos de ódios gratuitos ou financiados; em tempos de ódios espontâneos ou encomendados. Vivemos em tempos de ódios para todos os gostos ou contra todos os gostos. Vivemos em tempos de ódios para cada tipo de pessoa e ódios contra cada tipo de pessoa. Vivemos em tempos de ódio contra a cor da pele em nome da raça pura, de ódio contra as crenças em nome do ‘Deus puro’, de ódio contra a opção sexual em nome da sexualidade pura. O ódio é sempre um desejo controverso de pureza ou a expressão de um puritanismo rebuscado e grotesco em vista de uma higienização cultural e moralizante. Vivemos tempos de ódios institucionais. O ódio tornou-se produto de consumo personalizado com código de barra e tudo mais. Temos um tipo de ódio de mercado que consumimos mesmo quando não queremos. É o ódio nacionalizado. Odiar em tempos atuais, tornou-se tão natural quanto tomar água ou respirar. O ódio contemporâneo tornou-se atributo daquela pessoa comum que vai ao supermercado fazer compras, à farmácia procurar a sua bula ou ao shopping passear num final de tarde.
A caricatura do odioso como um mostro ou como a besta do apocalipse, a tempos que não é visto mais assim. Tanto o ódio quanto o odiento, tornaram-se peças comuns nos mostruários da vida cotidiana. Quem odeia já não tem assim uma assombrosa cara de mal. Aliás, nenhuma cara de mal, de odioso ou de mostro tinha o soldado nazista Adolf Eichmann, que fora analisado pela filósofa alemã, de origem judia, Hannah Arendt, quando na oportunidade da sua cobertura como jornalista enviada pela Revista New York, ao julgamento do referido oficial. Diante desse estranho réu, Arendt confronta-se com os desafios do seu tempo. Arendt, empenhada em convicções construídas de antemão, talvez já alimentada por caricaturas prontas, pensava encontrar em Eichmann, a imagem do odioso-monstro culturalmente construído ou do odioso-monstro tradicionalmente pronto, semelhante o tal monstro apocalíptico de “dez chifres e sete cabeças” (Apocalipse 13, 1-14).
Arendt se surpreende ao perceber que Eichmann era apenas um homem comum; era apenas um soldado que cumpria ordens sem jamais questioná-las ou pensar em suas consequências. Em tempos de ódios em massa, o que temos é a ausencia de um pensar individual, cônscio de uma criticidade que pensa no que sabe ou no que pensa saber, que pensa no que não sabe ou no que deseja conhecer. Um pensar que pensar seja que relação dialética supor. A ausência do questionamento sobre o saber e o fazer é a acusação mais clara da existência de um torpor da inteligência que coloca toda uma sociedade em um devaneio sóbrio. Para Arendt, Eichmann não era um homem mal ou odioso, nem muito menos um monstro. Pelo contrário, ele apenas não questionava o que era preciso apenas executar. Ele era apenas um burocrata que seguia ordens sem pensar sobre elas – nem sobre si mesmo – e suas consequências.
Em tempos de ódios, o que sofremos é de ausência ou vazio de pensamento. Em tempos de ódios, do que sofremos é da produção em massa de ‘pessoas-vazio’, ‘instituições-vazio’, ‘sentimentos-vazio’. Em tempos de ódio, a sociedade torna-se executora de um projeto de construções de vazios em série. O ódio é um tipo de vazio habitado, onde quem habita é tão oco quanto o vazio produzido pelo ódio que sente. Assim, o ódio sentido é um tipo de vazio produzido e de vazio habitado. Como afirmamos acima, temos um tipo de ódio de mercado, onde o vazio é produzido como produto de consumo e oferecido em prateleiras subgênero ou para inquisições raciais, éticas, político-sociais, econômicas ou religiosas. É evidente, como vai firmar Tiburi (2016) que “precisaríamos pensar mais, isto é certo, mas vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar o vazio da ação e o vazio do sentimento. O vazio é o ethos de nossa época”.
Voltando ao pensamento da filósofa alemã, de origem judaica, em sua obra Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a Banalidade do Mal, de Hannah Arendt (1963), ela nos mostra que não é possível atribuir atos de ódio a monstros não humanos, mas a pessoas que vivem a vida como nós, pessoas comuns como eu e você que levam o carro na oficina e ficam bravos com o aumento da gasolina. Os sentimentos e atos de ódios são coisas de pessoas comuns. Há momentos na história em que muitos dos que vivem uma vida dura, sem reflexão, sem pensamento, sem criticidade e sem espaço para discutir e construir opiniões, acabam seguindo o mais fácil, tornando-se meros executores de ordens dadas e neste momento, reprodutores de ideologias do ódio e da intolerância.
Referencias
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999.
TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 7ª edição, Rio de Janeiro: Record, 2016.
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