Carta a alguém que não mais espero

(Ouvindo Travessia, Milton Nascimento.) 

As pessoas olham-me espantosas quando pronuncio o teu nome. Estarrecidas, na verdade, acreditando que ao lembrar momentos estou a plantar um pé de saudades – doído e insaciável. Elas ignoram a casa do sentimento. Os passarinhos bem entendem essa proeza na prática: constroem com afinco os seus ninhos, detalhe-por-detalhe, mas não se escondem das asas, da hora do voo. Amo-te ainda, não nego, não vou contra a minha real natureza. Memória é tinta de lápis antigo, nada escreve por cima. Contudo, as minhas janelas estão abertas, necessito purificar o ambiente da alma, o verde e sol dos nascimentos. O nosso tempo não consta agora, nem por isso vou deixar de sentir o que sinto. Pensarei em ti com a mesma força das lavadeiras nas margens dos rios. Tal qual elas, tenho poucas certezas, mas estendo os lençóis alvos sobre as pedras, porque “a vida continua e se entregar é uma bobagem”.

Ouço as nossas canções, releio os poemas com beijos entregues. Nada constrange, nada ofende. Em mim mora a tua imagem de cabelos suados e um leve ouriçar na testa. As tuas mãos que traduziam o meu corpo em braile. Amo-te, profundamente, no entanto, há caminhos, nestes escolhas e eu decidi seguir – lamentavelmente a tua estação parou, por palavras demais e raros gestos. Sim, nos quisemos deste modo. Culpados não há. Carruagens, interlvados de lua e estrelas, sereno e mãos dadas. Somos responsáveis por nós mesmos, no sentido lato, com irresísteis margens de glórias e perigos. És o Amado que não mais espero. O afeto que abraço, sem grandes ilusões. A ausência que não cega. Exercício de silêncio e serenidade. Meu Amor, o que hoje espero é a canção nascida em mim. 

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Abraão Vitoriano

Formado em Letras e Pedagogia. Pós-graduado em Educação. Escritor. Poeta. Revisor de textos. Professor na Faculdade São Francisco da Paraíba e na Escola M. E. I. E. F Augusto Bernadino de Sousa.

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