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Cristina Moura

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Colagens

23/12/2020 às 14h55

Coluna de Cristina Moura

Por Cristina Moura

Uma das terapias mais gostosas que conheço é a colagem. Papel sobre papel. Que delícia. O que era aparentemente frio e descartável, quase lixo, vira uma ideia. O que era amorfo, cria ramificações de mensagens, promove diálogos, constrói uma cumplicidade. Da base branca, uma folha qualquer branca, surgem intenções de imagens, provocações de pensamentos, escolhas de perspectivas, silêncios.
Quando percebi a força do silêncio em cada composição, senti um olhar mais exigente. O que chamo de silêncio é o espaço vazio, que não ganhou colagem, que não contou com superposições de quadrados. Corto os quadradinhos porque são mais fáceis, e até me contento com eles.

Às vezes, um retângulo é bem-vindo. O mais complexo é sobrepor cada parte picotada: de que maneira, quantos tons, qual a proposta.

As interrogações são muitas, mas, como é terapia e algo que injeta prazer no cérebro, não há desespero, não há prazo, não há multa, não há sirene, não há pênalti. O motivo é colar, colar, colar. Ao passo que separo as cores de cada pedaço de papel, imagino o que pode ser construído. Nem sempre a resposta aparece, assim, pronta, cheirosa, lapidada. Paro um pouco. Vejo os fragmentos se conectando, rumo a uma constelação de novas ideias. Preencho algumas lacunas que chegaram, controlo a gosma que vai se solidificando na superfície, vigio se alguma ação vai enrugar a base.

A secagem é tão importante quanto a colagem: aprendi tal técnica no sofrimento, ao ver o papel principal se rasgando, depois de tufos de cola amontoados. Tive que refazer o trabalho, que tomou outra estrada e outras sensações e leituras. Tudo bem. O importante é colar. Enquanto isso, as fotossínteses acontecem, as aranhas tecem suas teias, os joões-de-barro erguem seus condomínios. Enquanto isso, gente e mais gente hiberna, gente se vira para sobreviver, gente que é gente se toca, gente e tanta gente vai longe, gente que nem sabe se é gente apanha, gente vira gente. Enquanto isso, vou colando. Enquanto isso, as cores sobrepostas ganham oxigênio, ganham identidade, ganham harmonia. De repente, uma janela. De repente, uma orquestra.

Quando descobri o uso do kraft, aquele pardo que serve para embalagem, aquele famoso saco de pão, comemorei a chegada de outra percepção. Vi que a espessura de um papel que foi colado sobre outro papel, com uma espessura diferente, promove outra linguagem. O relevo, de longe, mostra-se como autônomo. Como o conteúdo é um pouco mais fino, é ideal espalhar os pedaços entre as pequenas imagens que estão se articulando, que ainda nem supõem em que se transformarão.

Panfletos, encartes, folders: bons candidatos às minhas colagens. Um dia, claro, foram úteis com suas informações. Ao caírem na minha mesa, deparam-se com uma tesoura sem ponta. E, apesar de nascidos com brilho, em sua maioria, ganharão pinceladas e pinceladas de verniz acrílico, para conservar o que foi criado. E, se é terapêutico isso tudo, não há tempo para inflação, bicho-de-pé, enxurrada, desmaio, ronco no estômago. Se é para colar, vamos colar.

Revistas rasgadas ou que não despertaram mais interesse são alvos imediatos. Não necessito de figuras, letras, gráficos, números e fotos para os empreendimentos: são as cores, sem formatação, que me cabem. Cada minúsculo recorte é colado sobre outros minúsculos e, de minúsculo em minúsculo, a imagem central se agiganta. De repente, nasce um movimento, uma conjunção de vozes. Um mundo habitado. Colagens. Colagens. Colagens.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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