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Como se não bastasse

21/09/2020 às 18h27 • atualizado em 22/09/2020 às 12h13

Crônica

Por Cristina Moura

Como se não bastasse, fiquei tão empolgada com minha crônica recente sobre cavalos, que esqueci de utilizar um hífen. Desembestei na ladeira. Pois é. Venho aqui tentar me redimir. Ao reler o texto, alguns dias depois, percebi que fiz uma sopa de hifens, mas esqueci de colocar o tempero do adjetivo. Amarelo, se escuro, ganha este bendito tracinho: amarelo-escuro. No meu caso, foi cinza-escuro, a cor do meu asno, conseguido por Brandina, para que eu desfilasse com honras e glórias no distrito de Mata Grande. Pronto. Foi isso. Lembrando que a palavra claro passa pela mesma norma. É o que desejo a todos nós: que tenhamos um dia azul-claro.

Como se não bastasse, lá vou eu, voltar à região de Conceição. Vou navegando pelo Piancó. O forró troando. Vamos comer bolo. Vamos brincar de quê, não sei. Vamos de cademia, com uma exigência: o perré-pé. Nem sei como escrever: seria perrepé, quem sabe. Consiste em voltar em cada casa com o mesmo pé, ou seja, pular duas vezes, na brincadeira de cademia ou amarelinha. Vamos. Vamos chamar a vizinha. Vamos comer canjica.

Como se não bastasse, é sempre bom registrar tanta coisa. De forma específica, acionar minha lembrança à visão espetacular que é o horizonte atrás da igreja. Falo da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Lá longe, bem longe, muito longe, estão plantados os coqueiros gigantes, como eu dizia, aos meus poucos anos. A vegetação era algo assombroso que eu via na infância, em se tratando de fenômenos da natureza. Na fase adulta, voltei a olhar. Um assombro diferente. Belo. Continuam os integrantes nobres da paisagem, que muda bastante quando chove. Ganha verde, riso, outros perfumes.

Como se não bastasse, estou iniciando cada parágrafo assim, com esse como se não bastasse. Como se não bastasse, você, querido leitor, deve estar se perguntando por que faço isso. Como se não bastasse, você sabe. Como se não bastasse, na verdade, nós nos entendemos. Tem gente que não entende que nós nos entendemos, mas, tudo bem. Um dia vai entender, talvez. Como se não bastasse, talvez. É que cada um de nós exerce outro tipo de fenômeno, o livre-arbítrio. Que regra fina. Mas não é de etiqueta, é de essência.

Como se não bastasse, daqui a pouco vou bebericar um café. Esse daqui a pouco, no falar de alguns lugares, é o agora mesmo. Engraçado. E o agora pode ganhar um diminutivo, para ficar ainda mais próximo, rápido, fácil. Pois é. Diminuir, nesse patamar de coqueiros e vontades, é um recurso simples, como quem vai chamar um gato. Nossa língua abraça o mundo, eu daqui, você daí, sim, vamos, voltamos, chegamos, viajamos, pensamos. Diminuir também vira bicho: oprime, pisa, tritura. Mas não vou mexer com esse significado. Deixemos suas neurastenias lá mesmo, no porão.

Como se não bastasse, volto à casa dos avós, talvez para sentir aquele cheiro de talco nos guarda-roupas e malas. Como se não bastasse, esse como se não bastasse, entra, sem ser no início do parágrafo. Como se não bastasse. Mas, vamos ao café. Vamos, agorinhazinha, variação ainda mais chegada do agora. Significa dizer que é um aceno para outra palavra imediata: já. Já: muito tenho a falar sobre estas duas letrinhas e este acento agudo. Mas, realmente, é conversa para mais de metro e noutra hora, noutra crônica. Prometido.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

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