Da molecada nas ruas
Baderna, arruaça, confusão. As palavras têm poder, como já disse algum líder religioso. E carregam consigo juízos de valor, visões de mundo e intenções políticas. Pois dizer que os movimentos que se avolumam em São Paulo e em outras partes do país, contestando o aumento das tarifas do transporte público, são expressão de anarquia é apenas mais um discurso para ler, e no caso deslegitimar, este fenômeno que estamos começando a assistir, com a volta das grandes manifestações de rua, que vinham tão em baixa em nosso país nos últimos anos.
Um outro discurso é o midiático, sempre preocupado com os impactos no trânsito e a interrupção do fluxo, de automóveis sobretudo. É mais ou menos este também o discurso das autoridades, como se o espaço público fosse local apenas para uma coisa: o deslocamento ordenado entre dois espaços privados. Da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Ou, no máximo, para o espaço privado das compras, numa cidade pacífica e ordeira. Mas quem disse que o espaço comum não pode ser o local da discussão dos temas e problemas que são comuns a todos?
Há ainda o discurso da classe média tradicional, eivado por pré-julgamentos e precipitação, ou talvez mesmo negligência em procurar entender do que se trata. É o discurso de que estes movimentos nada mais são que a manifestação de rebeldia de um bando de filhinhos de papai desocupados, eventualmente maconheiros ou manipulados por partidos políticos, que novamente só querem o que? Fazer baderna, arruaça, confusão. São, portanto, discursos que se casam, fecham um círculo, mas não explicam o que está acontecendo.
A única certeza nisso tudo, se é que existe alguma, é que ninguém sabe muito bem o que está acontecendo. Nem os movimentos que convocam as marchas, nem as autoridades, nem a imprensa, nem os intelectuais. Mas cabe prestar atenção no que está se passando. A molecada, aqui e lá fora, tem e sempre teve suas demandas, e já se ligou que a democracia hoje em dia talvez esteja completamente dominada. Pelos grandes interesses privados, fortes e hábeis em fazer seus lobbies junto ao sistema político e garantir assim os seus interesses, antes e acima do restante da sociedade.
É óbvio que não se pode falar de uma geração como um todo, mas talvez estejamos assistindo ao surgimento de uma população de milhões de jovens, a nível mundial, que não apenas descreem de grandes utopias igualitárias, mas descreem também dos partidos políticos, da mídia tradicional e dos grandes interesses privados. Uma parcela importante da juventude que inclusive talvez não almeje pra si o futuro pacato e tranquilo prometido pelo Mercado, em cujo horizonte os jovens seriam nada além de consumidores e colaboradores, este termo oco com o qual as empresas passaram a se referir aos seus funcionários de alguns anos para cá.
Engana-se quem pensa que o que estamos vendo estes dias, aqui ou na Turquia, por exemplo, seja motivado exclusivamente por R$ 0,20 a mais na tarifa do transporte ou por algumas árvores a menos em uma praça. A molecada descobriu a liberdade e a horizontalidade da internet, e agora quer experimentar isso na política também. Eles usam as redes, mas estão nas ruas. E o Estado, diante disso, só tem duas opções: ou reprimir, ou abrir diálogo. Qual vai escolher?
Texto de Wagner Iglecias| Doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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