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Mariana Moreira

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Estranho amor

26/04/2021 às 19h59

Coluna de Mariana Moreira.

Por Mariana Moreira

“A mulher que ensinou Cajazeiras a amar”.
A sentença se repete, de maneira recorrente, nas notícias do seu falecimento: “morre Lilia das Mangueiras, a mulher que ensinou Cajazeiras a amar”.

Nascida Maria de Jesus, na zona rural de São José de Piranhas, no final da década de 1930, Lilia enfrenta os rígidos padrões morais quando, adolescente, é expulsa de casa. A perda da virgindade representa uma nódoa permanente na honra da família.

Pobre, semianalfabeta, sem quaisquer qualificações, lhe acena apenas a prostituição. A “mais antiga das profissões” lhe socorre como possibilidade de vida.

Mas, logo cedo, ela percebe que a prostituição lhe renderia dividendos. E a transição de prostituta para cafetina dar-se na instituição das Mangueiras, um lugar afastado da “decência” da cidade e arborizado com muitas árvores de mangueiras. Aí, meninas pobres no desabrochar da adolescência, muitas expulsas de casa e da convivência social pelo “deslize” da perda da virgindade ou tangidas pela fome e miséria, são recrutadas e, aquilatadas pelos dotes físicos e beleza, classificadas em termos do poder de sedução e atração dos fregueses ou clientes. Estes compondo um vasto universo de adolescentes conduzidos pelos pais para as primeiras “iniciações” na vida, trabalhadores, políticos, artistas. “Homens de bem” que, na tranquilidade de seus lares e na honradez de suas relações sociais, condenam a prostituição, preservam a “honra” da família e zelam pela moral e os bons costumes.

E assim, Lilia das Mangueiras se notabiliza em Cajazeiras como a mais famosa dona de cabaré da região. Um cabaré que ganha notoriedade nacional quando, uma proposição da Câmara de Vereadores de Cajazeiras indica a concessão de um “titulo de cidadania” para Lilia. Não lendo o texto político das intenções, explícitas ou mascaradas, que motivaram a proposta, por muitos assumida a paternidade, Lilia, mais uma vez é vítima da hipócrita moral que, na adolescência, lhe herdou a prostituição.

“A mulher que ensinou Cajazeiras a amar” infla seu ego e ofusca a compreensão de que esta é mais uma estratégia de segregação. Ela, em seu cabaré de adolescentes imberbes e jovens de beleza escolhida a dedo, não ensinava amor. Ao contrário, o “amor” não era ensinado, mas comercializado na exploração dos corpos, sonhos e dignidade de tantas meninas que atraiam homens em busca de prazeres interditados nos seus sacrossantos lares. A prostituição foi, para Lilia das Mangueiras, sua principal atividade econômica. Não entra em cena o mérito do tratamento por ela dispensado as suas “meninas” que, segundo relatos vários, era afetuoso e, geralmente, maternal. Mas, para a sociedade que, um dia, com desfaçatez, lhe propõe o título de cidadã, Lilia continua sendo apenas uma interessante fonte de dividendos – econômico, político, promocional.

A discussão que a máxima “a mulher que ensinou Cajazeiras a amar” anula é de que, lhe restando apenas a prostituição como alternativa de sobrevivência, ela converte essa alternativa em atividade econômica, recrutando meninas no desabrochar da adolescência para, negadas enquanto humano, saciar desejos e interesses de alguns.

E morreu Lilia sem compreender que o epiteto “a mulher que ensinou Cajazeiras a amar” foi mais uma ardilosa tática a lhe negar a dignidade, negligenciada a todas que, prostitutas ou cafetinas, fazem da prostituição o negócio que enfeia e macula as honradas famílias.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

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