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Cristina Moura

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Fã do prato feito

22/01/2021 às 08h30

Coluna de Cristina Moura

Por Cristina Moura

Nem todo sonho meu por mim é lembrado. Nem todo sonho é lembrado totalmente. Um deles era uma espécie de sopa de letras. Muitas letras. Contagiavam-se de outras formas, outros códigos, outras chaves. Mergulhei nesse caldeirão, de forma amigável. Não senti calor ou tempero: senti vontade de descobrir novas letras.

Esse sonho foi recordado muitos e muitos dias depois. Como eu sabia que era sonho, não sei explicar. Eu estava num restaurante e observei o cardápio. Foi nessa hora que tudo se mexeu. Um pequeno estalo me fez entrar no sonho. Nem era dia de tanta fome. Poderia ser uma desculpa ótima: estou com essas visagens porque estou faminta. Não. Não era. Foi um daqueles dias em que a gente sabe que tem que repor proteínas, carboidratos e lembranças.

Sou um pouco arredia a restaurantes que mostram a comida em grandes porções. Sou aquela fã do prato feito. Não, não é preguiça, é estômago. Sinto enorme prazer em andar para descobrir um bom lugar para um PF. Sim, pois nem todo cheiro me convida. Há lugares que impregnam meu nariz de vinagre. Há lugares que me fazem pensar no tanto de cominho e pimenta-do-reino que alguém deixou cair na panela. Há lugares que fazem do sal o item mais importante da vida. Mas, há lugares simples, com aquelas receitas simples, com aquele odor convidativo. Quando encontro esse modelo, vou diversas vezes, faço propaganda, fico amiga do dono e dos funcionários. Mas continuo a procurar outros.

Há lugares tão confortáveis que me fazem lembrar de sonhos, que me fazem perceber que o ritual do almoço guarda seu tom sagrado. Esse meu sonho com as letras, por exemplo, surgiu na minha memória quando entrei no menu. Sim, entrei. Não duvide, por favor. Entrei. Na primeira porta à esquerda, segui. Eram corredores de letras, com formatos estranhos e belos também. Olhei bem firme. Era mesmo a lembrança do sonho. E o mais surpreendente: eu estava sozinha nas cenas que se apresentavam. Não apareciam aquelas tantas pessoas, aquelas centenas de seres desconhecidos, aquelas turmas uniformizadas ou aquelas multidões com propósitos definidos. Dessa vez, o código era para eu decifrar. Eu, euzinha, eu mesma.

Vi uma letra gigante, com enfeites e badulaques bem brilhosos: a primeira do nosso alfabeto. Para que eu visse a segunda, uma voz disse que era preciso acordar e dormir de novo e sonhar de novo. Que coisa. Essa voz era minha. Os especialistas dizem que a fase mais profunda do sono é a que nos faz adentrar numa narrativa diversificada. Quando nos lembramos dias depois, não sei. Não sei do que se trata, assim, com exatidão. Talvez uma armadilha.

Enquanto isso, posso revelar que as letras se posicionavam para formar nomes. Das palavras, brotavam termos. Dos termos, combinavam-se expressões. Logo em seguida, jorravam as frases, numa quantidade incompreensível. Tentei disfarçar. O garçom chegou, perguntando se eu queria algo. Sim. Olhei para ele e disse, por dentro: algo é pronome indefinido. Continuei: a depender do compasso, pode ser também advérbio ou substantivo. Por um instante, em poucos segundos, vi que estava em pleno sonho. Tudo bem. Pedi uma água com gás.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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