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Cristina Moura

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Festa morfológica

10/12/2020 às 16h04

Coluna de Cristina Moura

Perguntamos para onde iria todo aquele conteúdo do cesto. Ninguém respondeu de forma completa. Mais uma vez, perguntamos. Nada. No dia seguinte, o advérbio principal da gafieira veio com uma nova plataforma de diálogos. Vamos para o galpão, falou um deles, que se dizia do outro lado, variável, representante dos adjetivos.

O cesto abrigava substantivos de diversos tipos, de todas as classificações. Quando a música começou, observamos todos os figurinos: primitivos e derivados, de mãos dadas, com uma coreografia aparentemente difícil. Depois de três eletrônicas pesadas, que ofereciam diferentes informações sobre regras, ouvimos um barulho. Era a chegada de uma turma perfumada. Em fila, como numa cerimônia medieval, vieram os próprios, se achando os maiores.

Ostentando letra maiúscula, em toda a sua extensão de ideias e conceitos, quem era próprio carregava sua mala de princípios, de robustas explicações para o início do mundo. Um deles quis defender sua participação decisiva na aglomeração das placas tectônicas. Outro, de longe, gritou que colaborou na coordenação de todos os jogos olímpicos. Outro, desafiado pelos vizinhos, provou sua importante contribuição para o crescimento populacional. Não se irmanavam, não conversavam: faziam de tudo para exibir suas iniciais grandes, em todos os horários, em todas as repartições públicas, em todas as catracas pluviais de medição do tempo.

Tempo. Foi aí, perto da meia-noite, que a palavra tempo desistiu de ser comum: passou-se para Tempo. Não existia, no entanto, uma comissão julgadora para tal atitude. Tempo era tempo quando e como bem quisesse, segundo um pessoal ligado às conjunções, criaturas que teimavam em modificar o sentido das orações e asseguravam que tudo estava controlado. Tempo era tempo, um ser independente. E mais: garantiam que tempo era intrincado nos numerais. Mesmo os fracionários, olhudos, faziam parte das raízes de uma árvore milenar; pipocavam entre manhã, tarde e noite e madrugavam por vocação; conseguiam parar o som e estabelecer novos ritmos; mudavam a velocidade das frases.

Com pronomes e pronomes de tratamento desfilando nos corredores, era hora de promover os artigos. Por um instante, imaginamos que se misturavam as Vossas Excelências com as Reverendíssimas, Magnificências e Altezas. Para incrementar o ambiente bem-decorado com flores e luzes, chegaram os detalhes, as exceções, os mimos-do-céu. Um megafone soprou: as normas são tais e quais, mas sempre há um menos tais e xis vezes quais ao quadrado. Um composto não gostou do que ouviu: era ele quem tinha que carregar um balseiro de hífens, muitas vezes, depois que todos iam para as suas respectivas casas.

O apresentador chamou, um por um, de forma paciente e clara, embora tenha se assustado com as interjeições, que vieram todas, de longe, a convite da organização do evento. O grupo das preposições ficava ali, nos bastidores, observando, para ver se conseguia uns substantivos para puxar umas danças simples. Mas, era hora de parar. Os coletivos se entristeciam porque queriam festa durante uma semana. Tudo bem, disse o diretor.

Ficou determinado que teríamos apresentações mais extensas, com classes de palavras se conhecendo mais de perto. Novos grupos e subgrupos seriam as atrações. Tempo avisou, de posse de documentos e cofres, que o verbo teria uma comemoração especial. Por quê? Chiaram, bem forte, os concretos e os abstratos, que engoliam vírgulas e traços, à esquerda ou à direita, mirando os graus superlativos.
Todos os inscritos, então, receberam um comunicado: flexionados, os instintos verbais estariam preparados para driblar todas as dificuldades que por ali passassem. Argumentos não faltaram: cada vendedor queria defender seu tino verborrágico. Com três modos, seria possível sair de qualquer enrascada. Com passado, presente e futuro à disposição, seria possível destravar qualquer crise. Com regências diversificadas, sairíamos da mesmice. Com o comando da ação, partiríamos na esquadra para o eldorado. Bingo. Descobriríamos terras, planetas e constelações.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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