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Renato Abrantes

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José, o filósofo

24/03/2011 às 00h00

José era o seu nome. Tinha doze anos e era um menino franzino, fraquinho, talvez por conta da fome que passava. As dificuldades eram enormes, sua família era paupérrima. A mãe, viúva de meia idade, ganhava a vida e alimentava as sete bocas, sua prole, com o suado dinheiro das lavagens de roupa. O dinheiro que recebia só dava para comer, mas isso não era empecilho para a prática da caridade. Em sua casa, abrigava, vez por outra, parentes que vinham do interior, em busca de tratamentos de saúde mais avançados, de oportunidade de emprego, ou mesmo a passeio (quando a vida nos sertões se tornava insuportável, sejam quais fossem as circunstâncias).

Não, essa família não morava no interior, mas numa favela, à beira-mar, numa grande cidade, de um grande país, não muito distante de nós. Um dos mais novos, o nosso José, procurava ajudar à mãe no que podia. Era bastante prático e não se encabulava de, após as aulas da manhã (era aplicado e sempre gostou de estudar), ir para os semáforos mais próximos vender balinhas, ou fazer malabarismo com três, quatro, ou cinco laranjas (quando as tinha).

À tardinha, gostava de perambular pela praia, não para cobiçar as coisas bonitas e caras que os meninos de sua idade exibiam, bonés, MP5, celulares, roupas de grife… não! Nada disso. José tinha algo no seu íntimo que superava todas essas quinquilharias modernas.

Mãos nos bolsos furados do calção meio sujo e rasgado, José, andando pela areia fininha da praia, gostava de ver o mar. Apenas isso, olhar para o mar, para a linha do horizonte e… olhar para o mar. Imaginava o que estava por trás, além daquela linha. Aprendera na escola que o mundo era redondo e se questionava permanentemente por que toda aquela água não esborrotava para cá ou para lá; imaginava se, do outro lado daquele montão de água, também havia meninos como ele, pobres, mas que apenas gostavam de olhar para o mar, tão grande, tão… infinito.

Pés descalços, chutava vez por outra algum montículo de areia, feito pela pegada de alguém que tinha passado por ali há pouco tempo. Olhar para o mar e chutar a areia. Era a sua diversão. E, entre um chute e outro, o montículo de areia se desfazia, e era esparramado à sua frente, numa decomposição de centenas de grãozinhos de areia, à semelhança de uma chuva de estrelas cadentes, não no céu, mas no chão. O espetáculo se tornava sem igual quando ele estava contra o sol, no finzinho da tarde, e os esparsos raios tocavam o solo, produzindo um efeito visual incrível. As areias eram estrelas…

Catava conchinhas, daquelas pequenininhas que todos nós gostamos de catar quando estamos na praia. Olhar o mar, chutar a areia, catar conchas. Era não apenas a sua diversão, mas também a sua contemplação. Com o tempo, José não se acostumou àquela rotina diária, mas, pelo contrário, a cada dia o mar trazia ventos diferentes para José, a cada dia, novos montículos de areia eram chutados e formas diversas eram moldadas (nunca havia uma igual à outra na sua imaginação), a cada dia, novas conchas, com detalhes, tamanhos, formas, ondulações e cores diferentes a povoar a curiosidade e o "espanto" de José.

Por que um mar tão grande assim? Por que tanta areia que nunca acaba? Por que tantas conchas?

José tinha algo a mais do que os meninos ricos que, por vezes, até zombavam do seu calção sujo e furado. Os meninos ricos se preocupavam apenas com os seus penduricalhos. José se preocupava com as suas dúvidas. Aos doze anos, enfrentando a pobreza e as dificuldades que a vida e a sociedade lhe impuseram, já era um filósofo. Não se contentava com as pseudo-respostas simplórias que lhe vinham à mente, ou que alguém lhas dava, frente a tantas perguntas, mas estava sempre "espantado", como o velho Platão, que não perdia o encanto, a estupefação e o medo pelo tudo e pelo todo.

Um pequeno filósofo que não se cansava de olhar para o mar, de chutar a areia e de catar conchinhas… e de fazer disto um sonho filosófico. E você, caro leitor, ainda se admira com a grandeza do mar da vida, com as areias das praias de nossa existência e com as conchinhas do nosso ser? Ou tudo já virou rotina?

Renato Abrantes

Renato Abrantes

Advogado (OAB/CE 27.159) Procurador Institucional da Faculdade Católica Rainha do Sertão (Quixadá/CE)

Contato: [email protected]

Renato Abrantes

Renato Abrantes

Advogado (OAB/CE 27.159) Procurador Institucional da Faculdade Católica Rainha do Sertão (Quixadá/CE)

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