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Heron Cid

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Mãe

11/05/2012 às 12h42

Eu nunca te chamei de vó. Nenhuma vez. Também pudera. A senhora me teve em seus braços desde o natalício naquele 26 de dezembro de 1983. De lá pra cá, tomastes a missão de auxiliadora da tua filha na criação do primeiro rebento dela. Seu primeiro neto.

Não sei se pelo tamanho da proximidade e freqüência da presença ou por começar a ouvir, ainda engatinhando e todos os dias, a minha te chamando de mãe. Mas a forma de tratar-te não era apenas uma daquelas heranças cognitivas. Era assim que eu te sentia no peito.

E foram tantos e tantos motivos para carregar-te com esse sentimento filial no coração por essa vida afora. Vida que só tinha, tem e terá sentido por tudo que a senhora plantou em terreno de amor, luta e esperança. Um arado que germinou meu mundo de ontem e de hoje.

Fostes uma lutadora. Tal qual a designação de Euclides da Cunha, a senhora, dona Nuita, era antes de tudo uma fortaleza. Força feminina com capacidade de morrer e renascer como a flor no meio das catingas que te brotastes no Sítio Cabra Assada (São João do Rio do Peixe).

Guardo bem um dos teus depoimentos. Os filhos, inclusive a senhora, todos reunidos em casa esperando pela provisão. O jantar saía tão logo o pai chegasse, depois de quilômetros de caminhada a pé carregando nas costas um saco de batata-doce, o prato do dia, todos os dias, perto da meia noite.

Veio a orfandade paterna. Cresceu, casou, fez descendência. Separada. Nunca mais casou e nem quis eleger um padrasto para os dois filhos. Tudo que aprendeu saiu das aulas improvisadas nos sítios vizinhos. Tinha orgulho da caligrafia bonita e por isso escrevia com todo gosto um bem desenhado Venância Francisca de Jesus no papel.

Escrevestes nas linhas da singela vida um exemplo de obstinação e perseverança. Trilhastes as capoeiras e estradas com um balaio de ovos à venda. Sustentou os filhos. Deu dignidade. A senhora nunca me disse, mas eu presumo quantas vezes fostes discriminada pela condição de separada, sem pai e morando com mãe e avó, a quem cuidou até os instantes finais.

Tenho vivo teu sorriso tão meigo. Tão simples. Simples como eram todos os teus sonhos e anseios. Pensar grande era acertar algum dia na TeleSena de Sílvio Santos. Para enricar? Não. Só para ter a oportunidade de dá o que nunca pode presentear todos os filhos. Era tanto desejo que a senhora, traída pelas vistas, “acertava” muitas vezes até que me pedia pra conferir as dezenas… Ríamos juntos dos seguidos erros.

Quantas vezes me peguei voando no pensamento de João Pessoa até Marizópolis lembrando do nosso amor. Do prazer que a senhora tinha de cozinhar pro seu “filho”. E como teus olhos brilhavam ao perguntar e ouvir que o sabor era de um manjar.

Como não me emocionar e derramar meu pranto incontido cada vez que lembro que beijavas a televisão como se tivesse a me acariciar, suplantando a distância e matando saudade. Eu sei, minha mãe, que chamavas vizinhos e tantos que passavam na rua para mostrar teu filho, teu troféu.

Cada nova visita, choravas como na primeira vez que parti. Era sempre a mesma despedida. Do teu “menino” deixando a tua casa, teu lar… No retrovisor, te vias ao longe, desfigurada pela dor. A saudade ia acelerada no asfalto das lembranças.

A senhora não sabe, mas o silêncio do carro na volta pra casa me forçava a exercitar na memória e me preparar um dia para tua perda. Até que veio aquele recente nove de fevereiro. Tentei, mas não segurei o choro no microfone ao pedir orações pela tua saúde. Na estrada, na madrugada, até o Trauma de Campina Grande, rogava a Deus por uma nova oportunidade. Uma oportunidade para todos nós que te amávamos. Eu sabia que a senhora sobreviveria e me enchi de esperança ao final da cirurgia. A espera, a angústia e a fé andaram juntas durante todo esse tempo. Foram tantos amigos meus que te fizeram teus também.

A senhora lutou. Muito. Bem mais que as forças que lhe restavam dos teus 73 anos. E venceu etapas, amparada na tua crença em Jesus Cristo. Até voltar a apertar minha mão, movimentar a cabeça. Cada esforço era pra me dizer que estavas ainda firme. E vencendo.

Força que contrariou todos os prognósticos até que voltastes a me olhar com doce carinho fraternal. Tanta força que balbuciastes, me abençoastes e pedistes para tirar-te daquela cama e levá-la de volta pra tua casa só fazendo sinal e apontando para a porta da enfermaria.

Eu preparei uma casinha improvisada para o tempo do teu tratamento. Bem do seu jeitinho. Um pezinho de caju e uma planta de romã no jardim para enfeitar teu dia. Eu sonhava com a senhora de cadeira de rodas logo cedo sentindo o orvalho da manhã bem pertinho de mim.

Dois dias após a volta tão esperada pros meus braços, regressastes em plena Sexta-Feira da Paixão para o calvário da UTI. Mãe, cada vez que informava dia e hora era minha forma de te dizer que estavas vencendo dia após dia. Era pra te passar alguma segurança no meio de tantos aparelhos e gente estranha. Como doía soltar tua mão, segurando forte a minha sem saber se haveria outra vez.

Nem sei ao certo se a senhora, nesses quase três meses de hospital, entendeu que fora vítima de um fulminante AVC hemorrágico. Eu até tentei te explicar. Mas prestavas mais atenção nos meus olhos e me fitava sempre como a última vez.

Ontem, tudo nessa minha vida doida e corrida conspirou para eu faltar na visita, mas algo me chamava. Fui fora do horário. Não sentistes, eu sei, mas apertei tua mãozinha já inchada e maltratada. Virastes teu olho entreaberto na minha direção e entrastes bem no profundo da minha alma.

Com os dedos que um dia brincastes te ajudei a abrir o outro olhinho. Nos encontramos mais uma e pela última vez. Era a despedida. No desfalecer de tuas forças, nada podias falar. Se pudesse, tenho certeza que não seria para reclamar dor, porque se doastes inteira a causa dos teus. Nunca murmurastes e nem pedistes nada de volta.

Tenho pia convicção que me escutastes quando bem perto soprei no teu ouvido: “Mãe, eu te amo muito. Obrigado por tudo que a senhora fez por mim. Eu nunca vou esquecer”. Também sei, minha mãe, que no fundo da tua alma e mesmo com o olhar turvo respondestes em silêncio da mesma forma que sempre fazias, por telefone ou me abraçando, com todo afeto e marcante simplicidade:

– Você mora no meu coração!

Nessa morada, continuarei a viver por aqui. Siga em paz. Abraço em Hernon, meu irmão, teu outro filho tão querido e por quem tanto chorastes e sofrestes após a prematura partida. Ah, antes que eu esqueça: a senhora também nunca me chamou de neto. E nós dois sabemos muito bem por quê. Não é mãe?
 


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Heron Cid

Heron Cid

Heron Cid é jornalista graduado pela UFPB. Filho de Marizópolis, no Sertão, atualmente é apresentador do Jornal da Correio, da TV Correio, além de apresentador do Correio Debate, da Rádio Correio Sat e manter uma coluna no Jornal Correio da Paraíba. Exerce também a editoria geral do maispb.com.br

Contato: [email protected]

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Heron Cid é jornalista graduado pela UFPB. Filho de Marizópolis, no Sertão, atualmente é apresentador do Jornal da Correio, da TV Correio, além de apresentador do Correio Debate, da Rádio Correio Sat e manter uma coluna no Jornal Correio da Paraíba. Exerce também a editoria geral do maispb.com.br

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