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Mariana Moreira

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Malassombros modernos

28/06/2019 às 08h34

Coluna de Reudesman Lopes

As derradeiras brumas da fria noite de São João se dissipam no ar, tangidas pelos incandescentes raios de um sol que desponta entre amadurecidas folhas de jucás e aroeiras, que se despedem da fartura de chuvas. As escassas ramagens da frondosa cajazeira escondem afoitos galos de campina que, maviosos, anunciam o novo dia enquanto ao longe mugidos de vacas reclamam ordenha. No terreiro uma tênue fumaça escorre sorrateira, entre o cangaço de uma dormida fogueira, enquanto, em ritmo descontínuo, os últimos estampidos de fogos ecoam em lugares indefinidos.

Um gole de café desperta para o dia. No alpendre, vozes anunciam afetos e gentilezas de vizinhos e amigos que se agregam para uns dedos de prosa. Um taco de bolo de milho partilha humanidade e anima a conversa que, acompanhada por um saudoso forró gonzageano, traz como mote causos e estórias de um tempo que se perdeu e se encantou em passados e ontens. Estórias que, com sabor de infância e luz de lamparina, falam de almas penadas e de suas infinitas peregrinações à procura da remissão dos escabrosos pecados que, em vida, lhes renderam a errância. Estórias de aparições em sombra de oiticicas e beiras de rios, de lobisomens e outras entidades que, em formatos vários, vão ganhando personalidade e desenho ao sabor de cada narrativa e de cada autoria.

A fertilidade das prosas e conversas se estica em múltiplas fiadas que se entrelaçam e se desencadeiam. Afinal, uma estória puxa outra e um causo nunca acontece com exclusividade, sempre têm antecedentes e filiais. Assim, o tempo segue como se andasse ao contrário, na direção do ontem. E novos malassombros surgem em corpos, ou melhor, almas de desconhecidos que vagueiam por estes sertões na cata da diligente ação de algum vivente que lhe alivie, com orações e rezas, o padecer. Estórias recorrentemente entrecortadas com a assertiva: hoje ninguém mais acredita.

E como acreditar se a modernidade se enfronha nas estórias quando alguém mais afoito, de celular em punho, afugenta para dimensões passadas o que se fazia presente em aparições, botijas, tochas de fogo azuladas que vagueiam a ermo em noites de breus e ausências de luas. E o clima de amizade se desfaz e cada um se recolhe a solidão de suas sociabilidades virtuais, como a dar vida a profecia do sociólogo alemão Max Weber, que preconizava a modernidade e sua racionalidade como a raiz do “desencantamento do mundo”.

E me apego ao nosso profeta de tantos sertões e veredas como possibilidade de redenção dos nossos males modernos:
“O senhor não esteve lá. O senhor não escutou, em cada anoitecer, a lugúmem do canto da mãe-da-lua. O senhor não pode estabelecer em sua ideia a minha tristeza quinhoã. Até os pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente?“ (João Guimarães Rosa).

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

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Professora Universitária e Jornalista

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