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Damião Fernandes

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Mesa, toalha e bacia: Metáforas pascais

16/04/2014 às 09h31

Ao cair da tarde, estavam todos sentados á mesa na casa de um amigo em Betânia. Eles conversavam festivamente. Aquele era um dos raros e importantes momentos de confidência que estes homens tinham, visto que o seu dia a dia era bastante corrido, cheio de pregações, de curas, libertações, multidões que os comprimiam e outros que os insultavam. O cotidiano destes homens era sempre imprevisível e improgramável. Cada dia era sempre uma grata surpresa. À mesa, partilhavam sobre tudo. Entre eles não haviam formalidades ou cerimônias, pois antes de tudo eram amigos.

Conversavam sobre suas andanças pelos caminhos empoeirados da Judéia, Samaria, Galileia, Jerusalém, Cafarnaum ou Naim. Conversavam sobre o que tinham visto, escutado, feito ou sofridos entre vilas e povoados a fora. Cada um fazendo memória recontavam suas histórias pessoais de superação e desprendimento, ressaltando como cada um tinha sido atraído pelo olhar e pelas palavras daquele Galileu barbudo.

Já iam pelas tantas da noite, conversando, comendo e bebendo deliciosas iguarias que haviam sido preparadas pelos donos da residência onde se instalaram. Aquele momento não parecia ter pressa para terminar. A presença de cada um era vivificante, revigorante. Falar de si mesmo era uma das melhores experiências de desprendimento e libertação interior que aqueles homens faziam. A noite silenciosa e fria lá fora parecia competir com o calor humano da presença e o barulho da música e das conversas que aconteciam dentro daquela sala no andar de cima. Desde o cair da tarde que tudo parecia perfeito. Porém, nem todos sabiam que aquele seria o último encontro partilhado por todos e a última refeição que teriam juntos.

Quase ninguém percebia que aquele era o último momento, em que juntos, estariam todos reunidos a redor do Mestre. Acontecia naquele momento o ritual de passagem entre eles, chegava a grande hora da dor crucial que o Galileu deveria passar sozinho. Todos percebiam no olhar do Mestre um marejo de inquietude e de saudade, de ternura e angustia. Naquele momento no coração do mestre acontecia um turbilhão de afetos, mas nada que o tirasse a paz. Pois os amigos, são sempre possibilitadores de esperança.

Os verdadeiros amigos são mais que pessoas, são lugares. São travessias de passagem que alicerçam nossas estruturas, nossas construções interiores. O verdadeiro amigo nos introduz no processo da mudança, não tanto com suas palavras, mas muito mais com sua presença e seu olhar mudo. No mistério da dor inadiável e da angústia que nos visita, serão com aqueles que verdadeiramente amamos com quem mais queremos estar.

Naquela tarde especial, aquele Galileu não queria estar com as multidões ou pregando aos fariseus hipócritas sobre suas atitudes também hipócritas ou quem sabe ressuscitando mortos. Aquele Galileu compreendia por intuição divina, que são os amigos que nos ajudam a carregar a cruz e suportando-a conosco a torna mais leve. Todo processo de passagem e mudança essencial em nossas vidas, sempre torna-se redentora quando o amigo inesperadamente olha para nós e garante: “aconteça o que acontecer, sempre estarei aqui”. O Mestre sentia-se assim entre eles. Ele sabia que podia contar com eles.

(…) Nesse instante, João que era o mais jovem entre eles, talvez por isso o mais extrovertido e cantante de todos, começa a entoar belos cânticos judaicos. Acenando com a mão igual a um maestro, regia o coro dos discípulos. Todos o seguiam vibrantes e jubilosos, cantando os Salmos do Hallel. As mulheres que os seguiam, preparavam a mesa para a tradicional última ceia dos amigos. A alegria tomava conta daquele lugar.

Sentado na parte central da mesa, o Mestre olhava para aqueles homens que ele mesmo havia escolhido e chamado um por um, nome por nome. Conhecia de cada um história por história, fraqueza por fraqueza, virtude por virtude. Naquele instante estavam todos ali.

O Mestre os contemplava e do seu coração saltava uma alegria por estar neste momento com eles. Então, inesperadamente, num gesto de carinho e amizade que lhe eram próprios, o Galileu levanta-se da mesa com um sorriso largo em seu rosto, toma uma pequena toalha e uma bacia com água que já estavam numa mesinha ao lado e caminha em direção aos seus amigos. Inclinando-se, com sua mão em forma de concha desce até o interior da bacia e a trás transbordante de água e derrama sobre os pés de cada um deles e logo depois, suavemente, como quem gostaria de aliviar o cansaço de cada caminho percorrido, de cada espinho encontrado no percurso, o Mestre lava os pés dos seus amigos. Na rotina do dia a dia, no cansaço cotidiano de nossa existência, os amigos são como água fresca sobre nossos pés.

A páscoa de Jesus começava na simplicidade de uma casa cheia de pessoas queridas, que longe de serem os mais perfeitos ou notáveis da sociedade, eram os que ele escolheu e os que o havia escolhido entre tanto outros mestres. Isso já era o suficiente. Pois, os verdadeiros amigos não se importam com perfeições ou notabilidades. O que importa mesmo é aquela presença gratuita e desinteressada, mesmo que imperfeita e sem condecorações ao peito ou anel de acadêmicos no dedo.

A “passagem de Jesus” começava assim, na simplicidade de uma mesa, de uma toalha e de uma bacia com água que traziam sacralizados em si a metáfora da acolhida, da gentileza e do cuidado. O Mestre sabia que o viver da Páscoa estava muito longe de ser apenas uma prática moralizante da doutrina, dos afetos ou da fé. O Mestre compreendia desde o princípio que a verdadeira “Páscoa – passagem” acontece somente pela via do acolhimento, da ternura e do cuidado.

A páscoa de Jesus começou assim.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Damião Fernandes

Damião Fernandes

Damião Fernandes. Poeta. Escritor e Professor Universitário. Graduado em Filosofia. Pós Graduado em Filosofia da Educação. Mestre e Doutorando em Educação pela (UFPB). Autor do livro: COISAS COMUNS: o sagrado que abriga dentro. (Penalux, 2014).

Contato: [email protected]

Damião Fernandes

Damião Fernandes

Damião Fernandes. Poeta. Escritor e Professor Universitário. Graduado em Filosofia. Pós Graduado em Filosofia da Educação. Mestre e Doutorando em Educação pela (UFPB). Autor do livro: COISAS COMUNS: o sagrado que abriga dentro. (Penalux, 2014).

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