O coração de Marilda Sobreira
Com mais de 90 anos Marilda Sobreira Rolim permanece lúcida. Faz inveja a muito jovem. Conversar com ela é uma festa. Sem papas na língua, remexe o passado, revela coisas do baú. Às vezes, empolga-se, aí, a gente precisa dá um desconto. Faz bem ouvi-la debulhar episódios e traçar o perfil de vultos perdidos na lonjura da vida cajazeirense.
Ando ansioso para conhecer o livro de memórias que está escrevendo. Vem com chumbo grosso. Coragem não lhe falta. Inclusive pessoal. Já deu provas disso ao espantar, com cheiro de pólvora, quem, certa noite, perturbava-lhe o sono noturno. Quando necessário, carrega sua arma de fogo. Certo dia, mandou retirar-se de sua casa um laranja pretensioso que desejava comprar o sítio Serrote, pagando com dinheiro vivo. O Serrote é herança de seu pai, o major Epifânio Gonçalves Sobreira Rolim, que desempenhou, entre outras funções públicas, a de delegado de polícia na época do coronel Sabino Rolim, no tempo da “eleição a bico de pena”. O juiz e o delegado, então os cargos políticos mais importantes eram exercidos por figuras de total confiança do chefe político, na chamada República Velha, sistema desfeito a partir da revolução de 1930.
— E você subia em palanque?
— Não. Quem se meteu em política foi Nelson que foi vereador, após a queda da ditadura de Getúlio, em 1945.
Nelson Nogueira Rolim, seu falecido marido, era industrial criativo, homem de inteligência privilegiada, fez parte da velha UDN, nos meados século XX. O casarão onde Marilda residiu durante muitos anos ainda hoje existe. Fica próximo ao Açude Grande, ao lado do Leblon. Ali aconteceu a célebre resistência ao grupo de cangaceiros chefiados por Sabino Gomes, lugar-tenente de Lampião, em 1926. Sobrinho do padre Inácio de Sousa Rolim, o major Sobreira (pai de Marilda) ajudado por um vaqueiro enfrentou de dentro de casa o assédio armado do grupo. Não cedeu, mesmo ferido à bala, em episódio narrado pelos historiadores e usado como modelo para o romance Carcará, de Ivan Bichara Sobreira. Ivan, ex-governador, é sobrinho do major Sobreira, portanto, primo de Marilda. Ainda hoje ela narra os lances da luta com riqueza de pormenores por ter sido testemunha, ainda menina naquela ocasião.
Mas não pense o leitor que Marilda vive do passado. Eu, sim, com a mania de estudar nossa história, é que reviro agora essas coisas. Ela é cidadã atualizada, tanto é que vez por outra freqüenta as páginas do jornal “Gazeta do Alto Piranhas”, com artigos baseados em sua larga experiência.
— Marilda, quantos anos você tem mesmo?
— 94, mas o coração pulsa 40…
— Quarenta?
— Ora, Frassales, não se faça de bobo… ele vibra como o coração das meninas que votam pela primeira vez.
E deu uma gargalhada.
Cajazeirense residente no Recife
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