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Mariana Moreira

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O inconveniente

29/12/2017 às 10h49 • atualizado em 29/12/2017 às 17h13

O inconveniente - Por: Mariana Moreira

Como renovar forças para o ano novo que se anuncia? Como limpar da memória dias tão sombrios? Como apagar um tempo de fascismos escancarados quando ódio e intolerância são elevados a virtudes necessárias, prioritárias e exigidas como práticas de relações sociais? Como evocar o esquecimento para um tempo em que dignidade ganha a mesma escala de valor que um par de sapatos ou uma escova de dente?

O ano que termina deixa como principal legado um amargo sabor de retrocesso e desvario. Perdemos a inocência de que era possível construir um país a quem podíamos chamar Nação. Vimos minguar o orgulho verdadeiro, despido de ufanismos patrióticos e ideológicos.

Um orgulho que se desenhava viável na reinvenção de destinos e histórias, refazendo práticas e incluindo párias e indesejáveis.

O ano que termina retoma como “saudável” e maquia de novo velhas posturas. A visão de tupiniquim dependente e subserviente, cujo olhar alcança apenas a linha do umbigo, torna-se política oficial. Acovardamo-nos, temerosos, ante a repressora ameaça dos poderosos. Uma covardia que nos humilha. Humilhados, nos aniquilamos enquanto sujeitos históricos e entregamos riquezas, territórios, gentes. Somos apenas e tão somente aquilo prescrito pelos relatórios de agências financeiras multinacionais, massificado pela mídia e pelas propagandas oficiais. Somos apenas e tão somente nada.

E nada é invisível como a imensa e crescente população carcerária. Como os jovens negros pobres eliminados em um genocídio que se justifica e se legitima no argumento de que “elimina-se hoje o bandido de amanhã”, pois “bandido bom é bandido morto”. Como o crescente contingente de desempregados e subempregados ausente de pautas jornalísticas e de estatísticas governamentais e também anulados pelas “deformações” trabalhistas e previdenciárias, que penalizam miseráveis. Como os milhares de indígenas, ribeirinhos, povos da floresta, afugentados com a violência do latifúndio que, protegido pelo Estado, transforma terra, água, ar, bichos, gentes, histórias em meras mercadorias expostas nas gôndolas de um mercado perverso e desumano.

E o ano termina. O que fizemos de nossas vidas?

Revirar gavetas. Espanar poeira. Fazer balanços e somar perdas e ganhos. Gestos que, em nossas subjetividades, apontam esperanças em um devir mais alvissareiro.

E num canto qualquer desta história uma inconveniente experiência de vida se amostra com recorrência. Aparece no fundo de um armário, numa página de livro, numa manchete de jornal. Personifica-se em gritos e discursos. Metamorfoseia-se em sonhos e esperanças. Nasce e ganha vida em formas diversas e múltiplas faces.

Esta não podemos apagar, pois, como o brilho das estrelas, renasce a cada noite escura indicando que em algum lugar brilha o sol que lhe traz a luz.

Esta inconveniente experiência de vida pode ser nominada de esperança, cidadania, dignidade, solidariedade com os parceiros de história e de interesses.

Esta nem a mais ignóbil violência consegue eliminar.

Ela se chama Conselheiro, Zumbi, Dandara, João Pedro Teixeira, Elizabete Teixeira, Chico Mendes, Irmã Dorothy.

Ou quem, como nós, aposta no humano como caminho de vida e dignidade.

É essa lição que fica e que deve ser aprendida e ensinada nos novos dias que se anunciam de batalhas duras e embates vigorosos.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

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