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Cristina Moura

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O tempero abstrato

04/12/2021 às 08h35

Coluna de Cristina Moura.

Por Cristina Moura

Há de perturbador, e muito, no enunciado abstrato. Desconcerta, por giganteza, gente que gosta das tarefas lineares. E há diversos tipos desses seres sistemáticos. Gente que abomina a abstração porque simplesmente não quer se dar ao trabalho de tentar compreender o que se apresenta ali. Melhor dizer que não está entendendo. Mais barato. Menos tempo.

Se você, que está lendo, prestar bem atenção, sua plataforma de leitura cria uma tela abstrata. É um fundo abstrato, preenchido com caracteres, os quais, minimamente unidos com um ou outro espaço, devido às exigências gramaticais, formam um componente também abstrato, ou seja, um desenho. Concentre-se. Veja. O texto, em si, forma um objeto.

É indispensável lembrar que, mesmo que a plataforma pareça semelhante para alguns, que a veem, por exemplo, na tela de um computador, será sempre diferente a percepção daquilo que estiver desenhado. Quem inventou isso não fui eu. Foi a natureza. Respeitemos a lindeza que é nós todos desiguais, cada um com sua abstracionice, sendo esta a forma ímpar de ser cada um o que é, sem cópia, sem, portanto, objetividade total. Claro, concretude: carne, osso, órgãos, pensamento, espírito, repertório, árvore genealógica, livro da vida.

O abstrato não pode ser igual para todos. Seria penoso. Por mais que o artista se esforce para pintar algo marítimo, por exemplo, num tom de abstracionismo, colocando ali umas pedras, uma vegetação, uns animais, é certo que cada observador sente de uma maneira. Ao descrever o quadro, quem lê elege um ponto de conforto, um ponto em que o olhar ficou mais fixo, um ponto em que não identificou a cor exata, um ponto em que formou um conceito, um ponto em que arriscou um título.

Há inúmeras declarações de artistas que se propõem a caminhar por esses ladrilhos não muito compreendidos de imediato. Alguns autores fizeram seus trabalhos com uma intenção, uma proposta, um ponto de partida.

Especializaram-se nisso. Outros fizeram, mas deixando a intuição fazer mais, como se o pincel fosse o comandante. Estou citando a pintura, mas o ser abstrato pode acontecer com muitas outras formas de expressão.

Algumas colagens que fiz, ainda não publicadas ou exibidas, são completamente abstratas. Papel sobre papel. Talvez pelas cores que escolhi, poucas, a leitura ganhe um julgamento, de pronto. Mesmo assim, é dentro de uma lógica abstrata. Fiz como uma terapia silenciosa e simples. Cortei os pedaços, em quadrados e retângulos com tamanhos diferenciados, e guardei. Reservei a cola branca.

Em outro momento, abri o material e fui colando. Fui colando e pensando em como arrumar os recortes. Fui colando. Colando num papel branco, tamanho quinze por vinte centímetros, gramatura leve. Colando um pouquinho, depois outro pouquinho. Colando um pouquinho, depois outro pouquinho. Sem pressa. Colando um pouquinho, depois outro pouquinho. Colando e esquecendo de todos os problemas. Um saboroso ritual.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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