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Cristina Moura

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Salamê minguê

10/07/2020 às 07h53

Coluna de Cristina Moura

Passamos entre duas porteiras naquela tarde. Sem dúvida, não havia possibilidade de nos perdermos. Todos de mãos dadas, nós, trezentos e sessenta e seis pessoas. Cada um com sua ideia de figurino relacionado a um dia do ano. O número seis, depois do trezentos e depois do sessenta, ficava em alerta. Às vezes, era utilizado em algum dos jogos.

Não, não concorríamos a um milhão de reais. O que tanta gente poderia aproveitar de um milhão, não sei. Era apenas um jogo de descobertas: adivinhávamos as cores, adivinhávamos os pontos de contato entre as estradas. Naquela tarde de inverno nem foi tão fácil. Alguns sempre queriam concorrer ao milhão mesmo, mudar de rota, desintegrar a brincadeira. Quando surgia esse rompante de vaidade, começávamos do zero. Voltávamos aos trezentos e sessenta e cinco: e começava o ano, com cada um de nós a perceber os detalhes.

Socorro: um dos participantes gritou. Cuidado: outro apontou. Uma imensa cordilheira nos chamava. Entendíamos tudo pelos nossos pensamentos e não podíamos falar, apenas gesticular levemente, apenas manter a conexão com os fios de energia elétrica que por ali chegavam. Olhei para o horizonte. Falei, bem devagar: uni, duni, tê, salamê, minguê, um sorvete colorê, o escolhido foi você. Era meu espelho, eu mesma.

Apontei para a primeira porteira e corremos. Erramos. Nem era corrida. Um de nós lembrou: é para caminhar.

Perdemos muitos pontos. Até acertarmos a marcha, de forma equânime, levamos o ano inteiro, os mais de trezentos.

O seis dependia da sua relação com as fases da Lua: garantia que tinha visagens, falava com lobisomens, flertava com almas penadas, dançava com curupiras, pernoitava com as sereias. Tudo muito claro, até essa fase.

De repente, a cordilheira sugou os primeiros da fila. Subiram muito rápido, muito rápido, muito rápido. Caminhem: um deles falou. Em seguida, fomos nós, os outros, que esperávamos. Quando coloquei o pé direito no degrau que dava acesso à porta principal, acordei. Uma coceira nos olhos. Como assim, pensei. Trezentos e quantos integrantes, pensei. Um milhão, pensei. Então, procurei me concentrar nas frases, nas cenas. Não consegui. Ouvi um barulho. O som veio forte, de uma difusora estridente e incansável. O locutor tinha lá o seu charme. Dizia que o produto era doce, que estava barato, que não tinha agrotóxico. Era o carro do abacaxi.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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