Sangue em Minha Camisa
Por Damião Fernandes
Era um final de tarde. Saíamos da capela de Nossa Senhora da Soledade, localizada no bairro por do Sol. Como que de repente, um garoto de aproximadamente 14 ou 15 anos, que estava a brincar de bicicleta com seu colega sofre um um pequeno acidente. As bicicletas, parecem que se chocam uma na outra e o garoto cai violentamente no chão.
Quando olhei para ele, estava imóvel ao chão e junto dele uma pequena poça de sangue; rapidamente o tomei em meus braços e o levamos (João Luiz – meu irmão de Comunidade e Nilvam, o dono do carro que prestou socorro) apressadamente para o Hospital. (Como era de esperar se esperar, o pequeno garoto se contorcia de dores, chorando e gemendo insistentemente, visto que, o acidente provocou profundos cortes em sua cabeça e supercílios). Durante todo o percurso até o hospital, foram momentos de agonia, pois o garoto sangrava e chorava bastante.
Eu muito preocupado que o garoto dormisse, tentava conversar com ele, perguntar seu nome, onde morava, quem eram seus pais. Tentávamos mantê-lo acordado e acalmá-lo. Neste exato momento, me invadia ao coração um profundo sentimento de compaixão, amor e responsabilidade por aquele garoto. Quem ama se sente responsável. Até então eu não o conhecia. Nem ao menos sabia seu nome. Quando eu olhava para ele quase imóvel, frágil e sangrando em meus braços, pensei em como nos sentimos também frágeis e limitados diante da dor do Outro. Queremos fazer mais, mas o sentimento de impotência nos invade.
Porém, precisamos ir além dos sentimentos de incapacidade e/ou fragilidade. É o amor e a compaixão pelo Outro que nos impulsiona a socorrê-lo.
Então, chegamos ao hospital e rapidamente o colocamos em uma maca. Levamos como que apressadamente para a enfermaria de Emergência para que ele fosse atendido. Prontamente, enfermeiros e médico nos atenderam. Limparam o rosto do garoto que estava todo ensangüentado e colocaram gases sobre seus ferimentos. Enquanto isso, procurei conversar com ele, perguntando seu nome e ele disse que era Rafael e que morava próximo á minha casa. Nisso pensei, que há acontecimentos que mesmo que trágicos, servem para aproximar as pessoas que então conviviam próximas mas não se conheciam. Talvez se olhavam e nunca se enxergaram. Assim era o Rafael e eu.
O fato mais surpreendente e revelador, estava ainda para acontecer ou poderíamos dizer, para ser percebido.
Deixei o Rafael na sala sendo atendido e fui à sala de espero tomar um pouco de água. Chegando próximo a um bebedouro, peguei um corpo descartável e deixei que fosse enchendo vagarosamente enquanto eu olhava para a minha camisa completamente suja por causa dos pés do Rafael que a tinha tocado. Eu olhava para minha camisa, quando que de repente parei meus olhos na manga esquerda da mesma.
O que para muitos pudesse ser algo óbvio, como para aqueles profissionais da medicina, que já de tão acostumados com o sangue alheio, não vêem novidade ao perceberem no final de cada dia, suas roupas manchadas. Mas para mim, um simples professor de filosofia, a experiência fala mais. O sangue alheio em minhas vestes significa muito mais do que parece.
E naquela tarde, o sangue do garoto Rafael em minha camisa me ajudou a transcender o óbvio, Transcender aquilo que é cotidiano, costumeiro. Teve para mim o poder de revelação: Nossas vidas estão intimamente ligadas. Existe algo de comum em nós, que nos une e nos aproxima, nos torna íntimos e amigos, povo de uma mesma família: A família dos Filhos de Deus. Como vai dizer o Apóstolo Paulo: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. (Gl 3, 27-28). A dor de tantos irmãos e irmãs que sofrem deve ser também a minha dor. O sangue que tantos “rafaeis” derramam neste mundo violento, materialista e profano, deve ser um pouco meu também.
O sangue do garoto Rafael em minha camisa me fez recordar das vestes de um homem Galileu, chamado Jesus de Nazaré, que por amor assumiu em sua vida nossos pecados, nossas fragilidades e limitações. Ele que teve suas vestes ensangüentadas com o sangue de tantos “rafaeis” de todos os tempos que precisavam ser acolhidos e socorridos a uma hospedaria mais próxima. Ainda hoje, Jesus continua a socorrer tantos homens e mulheres caídos pelo caminho.
O garoto Rafael para mim foi um sinal daquilo que Paulo havia percebido bem antes que nós: Deus não faz acepção de pessoas. Ele nos acolhe e nos socorre indiscriminadamente. Não importa se somos seus “conhecidos”, “vizinhos” ou não. Ele acolhe também os distantes. Na verdade são estes os preferidos.
O sangue do garoto Rafael em minha camisa, me ajudou a compreender que trazemos em nós as mesmas marcas, os mesmos sinais: da preciosidade, da escolha e do socorro de Deus em nossas “camisas”, em nossas vestes, em nossa vida.
Ah, o garoto Rafael passa bem e já está em casa.
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