Só um pobre entende outro pobre
Por Carlos Gildemar Pontes – [email protected]
Ontem, no bar do Fon-Fon, em Cajazeiras, fui surpreendido por um catador que me chamou pelo nome. Apertamos as mãos e trocamos algumas palavras. Ele disse que só um pobre entendia outro pobre. E eu soube muito bem o que ele estava dizendo. Aquela frase ficou na minha cabeça martelando a noite inteira.
Fugi da pobreza entrando na Escola. Eram outros tempos, é verdade, mas a Escola podia unir a todos no mesmo ideal. Tive dificuldades em Matemática, que tormento! Tive grandes êxitos na Língua Portuguesa. Adorava Geografia, gostava de História, aprendi o Francês, corria e saltava na Educação Física, quase um atleta. E tudo no aperto de uma vida modesta.
Hoje, já não reconheço o mundo que a Escola me ensinou. A solidariedade entre bandidos e políticos ou políticos bandidos faz com que o catador não sonhe nem empreste um sonho a seus filhos, para que fujam da pobreza. Depois da conversa, olhei para um canto e lá estavam ele, a mulher três filhos, amassando latinhas e colocando dentro de um saco. Eles eram fantasmas passando entre as mesas a perguntarem se a latinha estava vazia.
Lembrei da situação do país. Bilhões desviados das obras públicas, favorecimento de compadres comparsas em negócios com o Estado, governos corruptos que se elegeram para realizar o sonho do povo pobre e que agora estavam aglutinados em torno da lama, com a bênção de intelectuais, figuras públicas e partidários de uma ideologia salpicada de sangue, roubo, mentira e alienação. Causa-me espanto a defesa de um governo que assumiu desvios delituosos e permanece no simulacro, porque fez planos, neutralizou parte da miséria, mas aumentou consideravelmente a riqueza dos que são capazes de beber uma garrafa de vinho de 8 mil dólares e comentar que a safra desta uva não foi das melhores. E nós, no bar do Fon-Fon, tomando nosso uísque sem saber se o selo de qualidade era falso ou tomando nossa cerveja transgênica. O cantor, muito simpático, reclamava que há tempos não pegava no violão, porque o som mecânico, o play back, já trazia todas as músicas para a sua voz.
Há rumores de Golpe de Estado. Não vai ter. Os mesmos que gostariam de dar o golpe são golpeados pela incompetência e pelo mundo corrupto que fez escola neste e em outros Governos. Eles não sabem como administrar. E os defensores da sujeira debaixo do tapete precisam alardear “golpe” pelos quatro cantos para alimentar a chama do maniqueísmo, dos que querem golpe, mas não haverá golpe. Para estes, existem o nós e os outros. Quem não for a “nosso” favor é nosso inimigo.
E eu aprendi na Escola, que me salvou da pobreza, que a diversidade como fator cultural é enriquecedora e absolutamente necessária para este mundo líquido.
Pero Vaz de Caminha pedia ao rei, na nossa Carta de Batismo, que mandasse urgentemente catequizar aqueles índios, pois eles eram como tábuas rasas. E junto com a “civilização” vieram todos os escroques do Renascimento. E eles nem sabiam o que era o Renascimento.
Voltando ao meu amigo catador, sou solidário a ele quando ele amassa uma lata. O ato mecânico pode esconder uma raiva profunda por todos aqueles que roubam a nação e desdenham do povo. Eu amasso meus papéis, projetos, planos, contas que não batem. Espero a civilização vencer a barbárie.
Quando estudante, nas aulas de Literatura, eu viajava com os professores. Hoje, poucos me chamam para viajar neste mundo denso, filosófico e poético da ficção. Muitos estão ferrados com a marca do mandante de plantão ou desiludidos com as cicatrizes que lhes marcaram.
Restamos nós, os catadores de alguma coisa. Só um pobre entende outro pobre.
Carlos Gildemar Pontes é Escritor e Professor de Literatura da UFCG. Tem 20 livros publicados e preside o PSOL em Cajazeiras.
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