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Damião Fernandes

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Sobre conchas e pérolas

17/01/2014 às 17h13

Certo dia, um homem caminhava silencioso pela praia. Era um domingo. Dias daqueles de verão ensolarado, lindo céu azul e quente, muito quente. Uma suave brisa batia suavemente em seu rosto. Geralmente nesses dias as praias estão transbordantes de pessoas, congestionada de palavras, sons, barulhos. Apesar disso, aquele homem mantinha sua caminhada, a sensação que sentia era que estava só. Parecia não haver ninguém próximo a ele. Ele caminhava envolvido em seus pensamentos e recordações passadas e atuais. Caminhava lentamente absorto em suas questões existenciais em suas angustias reais. Aquele homem insistentemente caminha e ao mesmo tempo era violentamente invadido por lembranças de sua infância. Pessoas, coisas, lugares, sentimentos e circunstâncias enovelavam suas partes mais secretas e lhe traziam saudades… Saudades dos tempos idos quando juntos com outras dezenas de crianças corriam a brincar sem ver a hora passar. Sua alma sentia o cheiro do capim molhado por onde escorregava a bola ligeiramente. Sua alma voltava àquelas noites escuras sob a luz da lamparina a ouvir sua mãe contar aquelas estórias de lobisomem e de “bicho papão”, enquanto esperava seus irmãos maiores voltarem, pois tinham ido pedir sobra de comida “na rua dos ricos”.
 
As histórias contadas iam até tarde da noite. Às vezes conseguia esperar. Outras vezes, por sentir tanta fome, sua mãe lhe fazia uma deliciosa garapa com açúcar e então ele adormecia.
 
E as lembranças lhe impregnavam a alma de uma saudade lancinante que enchia o coração de desejo de voltar ao lugar de sua gestação. Sentimentos estranhos, pensava ele. Um desejo de querer entrar no útero materno e mais uma vez provar do calor do cuidado e da proteção onde todos os bebês experimentam. Seu coração estremecia quando revivia os afetos guardados e memorizados no inconsciente provisório. O homem sofria ao lembrar de tudo, mas provava de um tipo de sofrimento que vem acompanho por uma alegria jubilosa. Existem dores que são mais que dores, são alegrias disfarçadas de saudade. O homem caminhava e caminhando sentia sua alma revisitar lugares, pessoas, instantes e circunstâncias onde fora desinteressadamente acolhido e amado, sem que fossem necessários textos ou pretextos para isso. Revisitar lugares onde amamos e fomos amados é atitude permanente da saudade. Reviver processos de afetos bem vividos é dom exclusivo da saudade.
 
O homem caminhava, quando de repente avista alí próximo aos seus pés, diversas conchas marinha que foram arrastadas pelas ondas até ás margens da praia. Eram tantas e diversas. Ele se abaixa e com suas mãos toma-as todas, senta-se e começa a observar uma por uma contemplando a beleza de formas, cores e tamanho dos moluscos. Sem entender o porquê, ao ver aquelas conchas, aquele homem recorda da aula de ciências que tivera com uma das professoras mais especiais: Vera era nome dela. Em umas de suas aulas a professora explicava como os moluscos fazem para se defenderem dos inimigos.  Segundo ela, quando o molusco é invadido por um parasita ou é incomodado por um objeto estranho que o animal não pode expulsar, entra em ação um processo conhecido como enquistação, pelo meio do qual a entidade ofensiva é envolta, de forma progressiva, por camadas concêntricas de nácar. Com o tempo formam-se pérolas perdidas. A enquistação mantém-se até que o molusco morra. Dessa aula ele nunca havia esquecido, pois um dos sonhos enquanto menino era poder conhecer pela primeira vez o mar. Historia de mar sempre o encantavam.
 
Ele não entendia o motivo pelo qual teria feito a associação entre os moluscos e aquelas lembranças e recordações misturado á saudade produzida por tais rememorações. Moluscos, conchas, memórias, recordações, historia sobre mar, saudade, pérolas, pouca coisa estava fazendo sentido naquele instante. Aquele homem contempla o mar e logo após seus limites, o infinito parecia contempla-lo também de longe. Mais uma vez, uma brisa suave batia em seu rosto e como que lhe trazia o sopro da intuição empírica, uma revelação começa a instalar-se no mais intimo de si mesmo. O que antes parecia distancias, ganha uma atual proximidade. O que parecia distinção, agora se reveste de uma semelhança.
 
É bastante possível, que muitas recordações, lembranças ou rememorações tenham semelhanças com esses parasitas indesejados que nos incomodam, nos importunam a nos violentar. Muito mais fácil, quem sabe, não seria extirpá-los de dentro de nós esses objetos estranhos. Se fizermos isso, correremos o risco de extirpar parte essencial e vital em nós. Haveria o risco de nossa essencialidade ir junto. Quem sabe aniquilaríamos parte estruturante de nossa identidade, do que somos de verdade. O grande desafio é entrarmos naquela enquistação existencial, onde progressivamente envolvemo-nos com essas “entidades estranhas” e progressivamente somos envolvidos por camadas de amor, de memória e de saudade – veremos daí serem produzidas preciosas pérolas. As memórias – felizes ou não – que trazemos em nós, quando envolvidas por pelos nácares de amor e saudade, tornam-se preciosas riquezas escondidas nos acontecimentos cotidianos.
 
A partir daquele dia, aquele homem compreendeu que as memórias que guardamos sobre as coisas, as pessoas, os lugares, os tempos, os momentos e as circunstâncias é a nossa maneira humana de eternizar o que de fato nos alcançou tocando o mais profundo de nós mesmos. O que guardamos é tudo aquilo que teve o poder de nos modificar, abrindo assim novos horizontes e possibilidades. E que a decisão mais coerente sempre deve ser a de deixar-se envolver por sentimos de amor, ternura e saudade. 

Preciosas pérolas sempre nascem daí (…).


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Damião Fernandes

Damião Fernandes

Damião Fernandes. Poeta. Escritor e Professor Universitário. Graduado em Filosofia. Pós Graduado em Filosofia da Educação. Mestre e Doutorando em Educação pela (UFPB). Autor do livro: COISAS COMUNS: o sagrado que abriga dentro. (Penalux, 2014).

Contato: [email protected]

Damião Fernandes

Damião Fernandes

Damião Fernandes. Poeta. Escritor e Professor Universitário. Graduado em Filosofia. Pós Graduado em Filosofia da Educação. Mestre e Doutorando em Educação pela (UFPB). Autor do livro: COISAS COMUNS: o sagrado que abriga dentro. (Penalux, 2014).

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