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Cristina Moura

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Sonhos da Ki-Pão

17/02/2022 às 18h33

Coluna de Cristina Moura - (Imagem ilustrativa/reprodução - internet).

Dois mil e vinte e dois é ainda um ano novo, bem novo. Tão novo e novíssimo, que me achego para contar certos acontecimentos que parecem esquisitos, que parecem não ter existido. Minha preocupação é tentar descrever o que vi, por mais bizarro que tenha se apresentado. Posso dizer, sem medo, que tudo é verdadeiro, mas dentro de determinado conceito. Há nuvens para todas as respostas. Se há nuvem digital, como a que abriga este arquivo, há aquela mantida em suspensão, graças às partículas de água; há aquela de muriçocas ou aquela que remonta a um lugar fugidio. Que afortunada e espaçosa é a nossa Língua Portuguesa.

Há também aquela nuvem que aparece nos sonhos. Aparece com milhões de franjas diferentes, com funções diferentes, com desejos diferentes. Logo, de pronto, num risco, transpõe um conjunto de opiniões, para acharmos tudo esdrúxulo, oh, que só em sonho, que só se for em sonho mesmo. Se tiver um traço de realidade, podemos questionar. Como naquela vez, em que cheguei em plena padaria, quietinha, e entrei na vitrine. Sim. Entrei. Entrei, igual a um fantasma. Fiquei num tamanho bom, para me empanturrar de doces. Essa foi uma das minhas nuvens preferidas.

Fui direto no sonho. O sonho que nem de longe era aquele ficcional. Muito menos aquele que experimentamos, quando entramos na fase mais profunda do sono, como defendem os especialistas. Meu sonho escolhido foi o açucarado. O mais gostoso. Eita, que maravilha. Massa com creme. E foi no creme que deslizei, como se fosse uma pista de patinação. Escorreguei, mas sorri, em estado completo. Gargalhei. Quase me engasguei.

Era uma paisagem doce, doce. Era um tapete infinito, claro, fácil. Constatei que, depois de deslizar à vontade, esbarrei numa montanha de rocamboles. Era sério, perguntei, ruminando, somente para me certificar que não era sonho. Espere. Era ou não era, nem sei mais. Notei que os bastonetes de chocolate me chamavam, um granulado por vez, e o bolo enrolado com aquela fofura típica do gênero me hipnotizava. Fui entrando no compartimento. Espiei. Nenhum dos meus companheiros de aventura por ali. Ótimo. Toda a goiabada era minha.

Pensei: isso é um crime. Isso é um incômodo. Isso é egoísmo. Devo pedir perdão, ao acordar. O pecado da gula arrancava na estrada. Eu era menor do que uma formiga, eu creio, pelo que medi depois, comparando com umas rosquinhas gigantes que estavam se avizinhando. Provei tanto as rosquinhas quanto os bolos enfeitados com ameixas e passas. Eu nem me aperreava. Respirava muito bem. Parecia que morava, há muitos anos, naquele balcão de vidro cheio de apetrechos.

Fui olhando, olhando, e procurando o bolo em formato de xadrez. Era aquele, brilhante, imponente. Entre a massa amarela e a massa marrom, uma convidativa pasta de doce de leite. Mergulhei. Mergulhei naquele rio de fascinação. Sorvi cada miligrama de açúcar daquela pura arte confeitada. Mergulhei de novo. Umas pequenas tranças achocolatadas quiseram me desafiar, mas eu estava em paz. Nada de brigas, disputas, confusões, barracos, planilhas. Era apenas uma visita.

Comecei a ouvir algo, baixinho, por entre uma pequenina abertura. Pedidos, muitos pedidos, gente, gente, gente de todo jeito, famílias inteiras, risadas, encontros e reencontros. No ar, sim, aquele cheiro de pão. Era outra nuvem hipnotizadora e poderosa. Aquele cheiro que, sabemos, entra nos poros. Aquele cheiro que abranda a consciência. Aquele cheiro que ensaia a boca do estômago. Aquele cheiro mais do que agradável, mas que respeitou a minha saga momentânea, a de abraçar o planeta adocicado. Pela esquerda, olhei, calada: bombas de chocolate, bombas de morango, bombas de limão, bombas e bombas. Explosões de vontades. Ninguém me empatava. O mundo não se acabaria naquele instante. Bombas. Bombas amigáveis. Bombas do bem, deliciosas. Olhei à direita: pudins, queijadinhas, biscoitos folhados, a vida sem mistério ou preocupação. Olha. Olha quem vem lá, multiplicada numa bandeja, produzida para o desfile. Marta Rocha, amiga, seja bem-vinda à minha festa.

Aquela Ki-Pão entrou em tantos sonhos meus, tão belos, que fecha esta minha receita de lembranças com o melhor que há em mim. Um colorido que nunca será apagado. Uma tela para sempre desenhada, pintada, lacrada na minha memória. Não sou eu, sozinha, quem reverencio. É a história da nossa cidade; é a história da região inteira quem agradece. Viva.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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