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Cristina Moura

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Verdade verdadeira

30/10/2020 às 09h01 • atualizado em 30/10/2020 às 09h02

Coluna de Cristina Moura

É, comadre, como eu ia dizendo, a verdade é verdadeira. Disse que ontem ouviram um vulto. E como se escuta vulto, não sei. Mas sei que se pode ver. Um compadre da vizinha disse que podia escutar, de tão estrondosa que era a clareza da luz. Pois, então. É isso mesmo. Disse que lá longe, por trás do sítio Esperança, indo mais para o lado do sítio Concórdia, eles avistam tudo o que é de vulto. E que tem toda semana. E é verdade verdadeira. Pois é.

Não é querendo dizer que acredito em tudo, mas outra comadre minha, a senhora se lembra, aquela que foi para São Paulo, pois é, filha dos meus primos por parte de pai, disse que ela via. Disse que era. Sim. Disse que era. E era verdade limpinha, verdade verdadeira. Como o dia vem depois da noite, como aquele juazeiro não seca de jeito nenhum.

Comadre, esse negócio de assombração é fato, o povo garante. Disse que é realidade, da boa. Verdade verdadeira. Não se assuste. Nem é para se assombrar. Nem era para ter esse sentido. Escute. Um conhecido meu, que trabalhava de entregador de leite, lá nas bandas do rio Verde, achou de se admirar com uma visagem. Não entendi. Ora, se ele viu, não sei por que se assustou. Disse que ele até desmaiou, comadre, de tão forte que era a visagem. Disse que era uma coisa enorme, que tomava mais de vinte metros de altura. Sufocava as vistas de tão brilhosa que era a situação. Daí que meu conhecido veio a ficar sem chão. Quem o socorreu, não sei. É possível que ele tenha se levantado sozinho porque naquele meio do mato não passa gente de hora em hora. É difícil. E era no amanhecer, no início, na boca do vento, com os primeiros raios de Sol, com os primeiros passarinhos cantarolando.

Mas está aí ele para contar. Ele conta em tudo o que é estrada, boteco, pouso. Vai contando e destrinchando como foi. Eu mesma, comadre, não sei se acredito. Mas disse que é verdade verdadeira. Coisa da mais pura realidade. Coisa fina. Coisa que só quem vê é quem sabe contar direito. Quem não viu, assim como eu, fica fantasiando, desenhando na cabeça.

Torço até para um dia me encontrar com uma imagem, uma cena desse tipo, uma inquietação próxima a que chegou na vista do meu conhecido. Pelo menos de cor parecida. Pelo menos para procurar, de mansinho, entender o que ele conta. Sim. Pois é isso.

Aquele meu outro conhecido, parente daquele moço, Seu João, que vendia rifa, sim, aquele, jura de mão junta que, numa noite de inverno, viu. Disse que outro conhecido, que atende pelo apelido de Zinho, nunca mais foi a mesma pessoa. Como pode, podendo. Pode sim. Disse que ele viu e gritou de susto, comadre. Nem imagino como é esse susto porque penso que é uma luz que contenha certa beleza. Não vejo por que se espantar, como quem vê uma monstruosidade. Pois é. Disse que ele passou quinze dias sem dar uma palavra. Só fazia beber água, comadre. Pense numa novela.

Mas, olha, aqui entre nós, eu acredito, de algum jeito. Sei que dizem que é verdade. Firme como uma rocha. Verdade, verdade, da mais profunda afirmação da história. E ele é um rapaz trabalhador. Não ia sair por aí mentindo, contando lorota com uma visagem. Fique sabendo, comadre, que eu, se me deparar com uma luminosidade que pode até tirar minha fala por alguns dias, não vou contar. Não conto a seu ninguém. Por quê? Ora, nem toda verdade verdadeira é assim, contada. Pode ser silenciada. Tem segredo que é a prova mais viva de uma coisa e que nem por isso é revelado. Guarda no seu íntimo, comadre, o caroço da verdade.

E, como eu ia dizendo, esse assunto de visão fora do tempo, visão de repente, tem algum fundo de exagero. Sei lá se aquele meu conhecido viu coisa tão alta. Sei lá se foram tantos metros. Pode ser que ele mesmo tenha se enganado. Não estou dizendo, com isso, que o rapaz mentiu. Não. Quem sou eu. Mas o rapaz, no susto, pode ter aumentado a forma, pode ter caprichado na intensidade, pode ter carregado na ideia da ilusão. Pois é. Mas se eu disser isso a outra pessoa, diferente da senhora, comadre, que é da minha confiança, é sujeito eu ser interpretada com outro olhar.

Disse que Donana, aquela minha conhecida lá do Pajeú, embarcou numa conversa assim, colocando algumas passadas na estrada do contador. Não deu certo. Foi moído para mais de ano. Inventaram que ela mentia e dizia, além disso, que o acontecimento nunca havia existido. Sinceramente. Isso mesmo. É melhor, acho, sentir a verdade com todo o seu universo. Sim. Porque é isso, comadre. A verdade, quando domina, é a verdade verdadeira.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

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