header top bar

Cristina Moura

section content

Vimos ufanos

16/07/2020 às 14h39

Coluna de Cristina Moura

O poeta Cristiano Cartaxo nem imaginaria o quanto uma expressão sua, fincada na satisfação em ser de Cajazeiras, habitaria o meu universo literário, tantos e tantos anos depois. Não somente. Habitaria o corredor encantado e místico que povoa os sertões, que entra naquela vila, que passa pela praça do canal, que sobe a ladeira do Alto Belo Horizonte, quebra ali no Pôr do Sol e no Sol Nascente e, do outro lado, no São José, para depois se encontrar com o Conjunto do Ipep e com as Casas Populares.

Minhas pernas de repórter perambularam muito por esses bairros. Em momentos singelos, descobridores de personagens; noutros, não tão palatáveis. Eis a vida. Vamos voltar mais um pouco. Na terceira série do que atualmente é chamado de Ensino Fundamental, eu estava pinotando nos meus oito anos de idade. Nossa professora, Nadir Gonçalves, gostava de ensaiar algumas músicas conosco. Trabalhávamos os significados das palavras. Uau. Para mim, era o céu se abrindo em cores ou o mesmo que a banana representa para o chimpanzé. Começamos a ensaiar o Hino de Cajazeiras. Auréola, por incrível que possa parecer, era uma palavra velha conhecida nossa. De tradição católica, a escola, há tempos, já havia nos apresentado alguns anjos e santos: todos eles devidamente aureolados.

Daí, na segunda estrofe, que se transforma no refrão, vem um bombardeio na minha mente: É por isso que vimos ufanos. Olhei para mim. Mirei naquele espelho em que Alice se vê, reproduzido em dezenas de outros. Depois entendi, com a explicação da professora, que a palavra vimos é apenas a flexão do verbo vir, na primeira pessoa do plural, no presente do modo indicativo. Nós vimos. Pronto. Tranquilo. E ufanos representa um adjetivo para o pronome oculto nós, delegando uma característica nossa, de como e quando vimos. Vimos satisfeitos com nossas conquistas.

Anos depois, tive que me deparar com o termo ufano adequado a uma pessoa presunçosa, vaidosa, pedante. O lado sombrio de quem se ufana. É claro que nosso poeta não quis dizer isso. Ele quis glorificar sua cidade e seu povo, que se sente feliz, que é o conjunto das pessoas que bebem sequiosas a água viva. Olha, aí. A água viva a correr dessa fonte é o segundo verso da quarta estrofe. Antes, encontrei-me com sequiosas, ou seja, com sede, sedentas, ávidas. E, para fechar e não mais esquecer, o significado de praza, a primeira palavra da última estrofe. É o verbo prazer, na terceira pessoa do singular, na forma afirmativa do modo imperativo. Ia até esquecendo de falar, outro adjetivo, um tal de inconteste. Que é isso, tia, perguntamos. Ela, de imediato: que não precisa ser provado, que é certeza. Do mesmo jeito que a gente existe. Sim. Uma coisa de cada vez, portanto.

Quando a Acal surgiu, fiquei radiante. Fiquei mesmo. Nossa história envolve diferentes e ricos segmentos culturais. As ondas radiofônicas, os grupos teatrais, os grupos musicais, os grupos de dança, os repentistas, os emboladores, os sanfoneiros. Artistas plásticos de todos os quilates: escultores, entalhadores, ceramistas, bordadores, pintores. Poetas, compositores, escritores. Alguns ainda escondidos, tímidos ou desconfiados, mas escrevem.

Ao saber da Academia, então, tentei codificar uma voz de vento acalorado, que soprou: É por isso que vimos ufanos/Festejar tua glória inconteste. Sim. Os dois primeiros versos do refrão. Para entoar meu sonho, a Orquestra Santa Cecília, que entra com seu peso de ouro instrumental, com sua presença indispensável. Tarol, prato, caixa, trompete, saxofone, clarinete, pistom, tuba, e tudo o que tivermos direito, para ouvir e admirar. Um, dois, três, marcialmente, em compasso. Desfile cívico-militar e poético, aqui no meu reino pode. Vou marchando na minha memória, soltando beijos para a plateia.

Certa edição da revista Oba! estava praticamente pronta. Meu irmão Christiano, este com agá, Christiano Moura, olhou para mim e disse: só falta o título da capa. Respirei. Bebi um copo d’água. Falei: Cajazeiras, teu nome reluz. Pronto. Dali a dois dias, saía a edição de agosto, para comemorar Carrazêra. Eita. Exemplares voando, segurando nas asas das palavras, com o carimbo da fala do poeta e um laranja sertanejo de fundo, trabalhado pelo mano designer.

Meu irmão ocupa a Cadeira 17 na Acal. O patrono é o poeta e repentista Gerson Carlos de Morais. Seu Gerson. Seu Gerson, nosso vizinho, na Zona Norte da cidade. Seu Gerson certa vez me disse que era também admirador de Cristiano Cartaxo. Seu Gerson me emprestou um violão, um pesadão Giannini, para eu começar. Seu Gerson pregou, porém, um combinado: que eu devolvesse o pinho assim que tivesse aprendido. Seu Gerson sabe que sofri com as cordas de aço. Seu Gerson ainda poetizou, com algo assim: volte sabendo, Dona Moça, ao menos o bê-á-bá. Seu Gerson, eu fiz calo. Aprendi.

Seu Gerson era casado com Dona Dulce, nossa amiga e costureira. Na casa deles, havia um misterioso sótão. Sim, claro: poeira, fantasmas, camundongos e lembranças. Na sala, os participantes da festa reconheciam a delícia do caldo de peixe de Dona Dulce, servido sempre com uma pimenta, da boa. A cantoria esquentava. O cheiro irradiava, da Avenida Francisco Matias Rolim, alcançando, por trás, a Rua Dom Zacarias. Os convidados eram do mais alto gabarito, em se tratando da ciência da poesia popular. Entre uma bebericada e outra de café ou fartas doses de poções mágicas que passarinhos não bebem, ouvíamos os motes engraçados ou arrebatadores, de diversos tipos: te espero bem perto na beira do mar, como é grande e suprema a natureza. Desafios. Rimas na ponta do martelo alagoano. Rimas para encher o lugar de aplausos, encher o chapéu de uns trocados.

Pois é, Seu Cristiano. É verdade. De todos os cantos e recantos, vimos ufanos. A cor da camisa não importa. A conta bancária, também não. A qualidade da terra por baixo da alpercata, muito menos. O que interessa é que, de todas as bandas, vimos ufanos. Vimos. Vimos envolvidos por um perfume de rosas, assistindo ao crepitar da chama bendita. Salve, poeta.

Crônica publicada na revista da Associação Cajazeirense de Artes e Letras


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Recomendado pelo Google: