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Cleanto Beltrão de Farias

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Xúva

06/04/2023 às 19h30

Coluna de Cleanto Beltrão de Farias

Por Cleanto Beltrão de Farias [1](Para Josy Cipriano) –

Estranha forma de talhar este ser incomum, tão sublime. Divindade rara que só se manifesta, em sua inteireza, na quadra do ano, quando prevista pelos profetas de Quixadá. Uma corruptela, é bem verdade, mas também um gesto libertário de teclar a palavra pela sonoridade – o som da escrita. Uma insurgência à gramática, à sintaxe, ao léxico e ao normal. Uma homenagem à entidade adorada, ao profundo amor pelas águas de março que se derramam, sangram, singram, embebedam, banham, refrescam e fecundam. Uma veneração a uma palavra fêmea, na sua recôndita essência, símbolo e simbiose perfeita de água e mãe, bênção, árvore, seios, telha, terra, folhas, frio, frutos, natureza, mel, leite, goteira, sementes, ventre, vento, biqueira, verdura, festa, fertilidade, fartura e feira. Ora, se puderam grafá-la por chuva, pluvia, piovere, rain, lluvia, regen, amana e pluie, por que não poderei escrever xúva, como um direito personalíssimo de escolha?

O insight desse novo termo brotou de uma noite de verão, dezembrina, daquela em que o sol abrasador, em céu limpo e a pino, e por sucessivos meses, aqueceu o chão, o telhado, as paredes, o piso, os móveis, o corpo e a alma. Alta noite silente, sombria, de horas paradas e coral de muriçocas. Madrugada abafada, agoniada, insone, inquieta, de vento morno de ventilador, de suor pegajoso e tempestades de pensamento. Típica da estação que precede a temporada xuvosa. Oh! Amanaci,[2] por que não vens refrescar, saciar meu desejo, afastar essa tortura e conciliar meu sono? – suplicava.

Lá pelas tantas, despertei do sono com um tênue marulhar de água caindo do telhado, inesperadamente. Surpreso e duvidoso, saltei da cama. E, ao descerrar a cortina e a janela, a dúvida logo se dissipou: xúva!!! Maravilha! Glória! Que benção! Que milagre! Da janela, um cenário de rara beleza se formara à minha frente, com um imponente gravatá, tal qual flor de lótus gigante, todo ancho, gozando na xúva fina que caía, serena e constante, envolvendo sua face e seus cabelos, banhando-lhe as grossas, longas e duras folhas. As árvores do entorno também sorriam de alegria, de prazer e contentamento. Até os sapos saltitavam de felicidade. Tudo era brilho e cheiro, de húmus e ervas. O ruído dos finos fios de água que caíam, se esparramando pelas folhas e copas, sonorizava aquela festa, aquela paisagem de contos de fada. Tudo à vista graças à lâmpada acesa do quintal. Finalmente, um vento frio e úmido, levantando a cortina e refrescando o quarto, me acalmou e me levou a um sono profundo. Logo cedo, inebriado e feliz com o tempo fresco e xuvoso, tornei-me convicto de que a xúva era um fenômeno particularíssimo na vida deste lugar. Sem comparação a qualquer outra chuva do mundo. Pelo menos daquelas localidades onde morei. Por essa razão, merecedora de uma denominação própria, singular e original.

No Sertão, o fenômeno pluviométrico é sobejamente reverenciado, desejado e festejado como em nenhuma outra parte do Brasil. Ao menos no da Paraíba. Basta uma noite de xúva, na quadra invernosa, para que as pessoas despertem curiosas,  ávidas para saber do volume caído. Quantos milímetros? Quanto maior o número, maior a satisfação. Até mesmo a compreensão dessa medida pelos habitantes é algo inusitado. Todos conhecem o milímetro de xúva e o metro cúbico de água. Muitos têm seus próprios pluviômetros em casa. E também suas cisternas. E na manhã seguinte essa informação é obrigatoriamente prestada pelo serviço meteorológico, nos programas radiofônicos, complementada por cada radiouvinte que telefona, informando: na Terra Molhada caíram 70 milímetros; no sítio Olho D’água, 83; aqui em Lavras da Mangabeira, 110 milímetros; no Sítio Almas, 63; aqui em Monte Horebe, foi somente de 30 milímetros. Notícias quase sempre seguidas de dados sobre a capacidade hídrica atingida por cada reservatório. E se for açude sangrando, vira manchete.

Vê-se, pois, que as manhãs sertanejas ficam energizadas pelo otimismo trazido pela última xúva, levando as pessoas ao contentamento e até mesmo a falarem mais alto. De igual modo, o trânsito muda, ficando mais ruidoso e agitado. O clímax dessa curiosa psicologia coletiva, porém, atinge seu ponto alto nas manhãs frias das feiras, aos sábados, onde, além do bom humor e simpatia típicas do sertanejo, juntam-se o ânimo e a felicidade. Tudo em função da esperança por dias promissores, anunciada pelas águas das xúvas. De modo que, nessa vasta região semidesértica, tempo bom é tempo carregado de nuvens, fechado, escuro, prestes a xover. Onde os temporais sempre são bem vindos. Também, onde se confunde inverno com estação xuvosa, uma vez que esta só acontece no outono.

A posição destacada da xúva no imaginário, na vida e na cultura  sertanejas tem, contudo, outras várias razões de ser. Primeiramente, pela sua chegada triunfal, gravada no receituário de PachaMama.[3] Nos sertões das caatingas os sinais da xúva são excêntricos e alarmantes. Para não dizer explosivos, escandalosos e perigosos. Quando vem chegando, ela é precedida por clarões, chispas de fogo e sons retumbantes, como se tambores gigantescos fossem tocados no firmamento. De início, os trovões são remotos, mas à medida que as nuvens negras se aproximam, o volume dos estrondos muitas vezes é tão alto que põe à prova a serenidade e a coragem dos afoitos e valentes. Vêm seguidos de fortes aguaceiros e rajadas de ventos. Como se os céus desabassem sobre a terra e, aos brados, mostrassem toda força, arrogância e prepotência, causando medo em tudo que é gente e bicharada. Nessas ocasiões, meu saudoso cachorro Relâmpago, apavorado, sempre corria depressa para dentro de casa, implorando por socorro.

Desta sorte, tamanha devoção por Amanaci deve-se a hábitos e costumes ancestrais profundamente entranhados no subconsciente de nossa gente. Muitos esquecem e até mesmo ignoram que aqui é um território de povos originários, que deixaram rastros genéticos e antropomórficos indeléveis em nosso povo, a exemplo dos olhos amendoados (orientais), do nariz grosso, da pele acobreada e dos cabelos negros e lisos, muito destacados e miscigenados na população local. Povos que aqui habitavam, como os Tarariús (Ariús, Janduís, Pegas, Panatis e Patamutés) e Carirís (Icós), mas que foram brutalmente repelidos, subjugados e aniquilados pelas escopetas, arcabuzes, espadas e bacamartes dos invasores brancos. Outra prova viva dessas reminiscências indígenas da xúva, na nossa cultura e tradição, são os festejos juninos da colheita e da fartura agrícolas (milho, mandioca e batata doce), celebrados em torno da fogueira com danças, músicas, cantos e rituais, antes da chegada dos portugueses. As maiores festas populares sertanejas, carregadas de sincretismo religioso advindo da colonização, continuam comemoradas nesse período – Santo Antônio, São João e São Pedro.

Mas, de todos os fatores de devoção à xúva, o mais marcante é a dependência de nosso povo aos imperativos climáticos da semiaridez, caracterizados pela irregularidade, que acarretam a escassez hídrica e mesmo sua falta completa nos períodos demarcados de incidência – fevereiro a maio. Em outros termos, o flagelo das secas periódicas que aqui se abatem,[4] durante os trezentos anos de ocupação da Gaia sertaneja, tem evidenciado o inestimável valor desse fluido precioso. Muito mais ontem do que hoje, evidentemente. Contudo, as secas não representam apenas o eclipsar da xúva nem se trata de um capricho da natureza, como se entendeu por longo tempo. Mas decorre de um crônico problema social, econômico e ambiental, resultante da desigual apropriação e utilização da riqueza, imposta pelo colonizador, que excluiu e segregou a maioria da população. Ao atingir as condições vitais, sobretudo dos mais pobres, as secas expõem, em toda sua dramaticidade, as injustas estruturas que sustentam a sociedade e a economia sertanejas. Tal fato se manifestou de forma tão incisiva na nossa história, que hoje constitui o marco identitário da região, evocado pelos cantadores de viola (repentistas), nos folhetos de cordel, na literatura e na música regional. O Velho Lua é o porta-voz dessa narrativa poética e intérprete musical desse drama – Asa Branca, A Volta da Asa Branca, Paraíba e Légua Tirana são ilustrativas – que não se restringem apenas ao infortúnio das secas, mas extravasam para o campo das diferenças sociais, das injustiças e dos desníveis regionais de desenvolvimento entre o Nordeste e o Centro-Sul do país.

Sob tal compreensão, a xúva é a matriz de todos os episódios e narrativas históricas do sertão semiárido nordestino. Sua alternância, entre abundância e escassez, tem exercido profunda influência sobre a psicologia e a alma sertanejas, pelo fato de afetar, substancialmente, as condições materiais de vida. Sobretudo quando sua falta assume proporções catastróficas, conforme assentadas em variados documentos históricos. Dos cronistas paraibanos que trataram das secas, destaca-se Irineo Joffily, porque traduziu com fidelidade e minudência a tragédia humana deste fenômeno. Em obra escrita nos finais do século XIX,[5] Joffily retratou a desgraça da grande seca de 1793, nos sertões da Paraíba e do Rio Grande do Norte, com uma fidelidade que choca e impressiona. Sob um cenário apocalíptico, narra a fuga dos retirantes para a cidade de Mossoró, em condições sub-humanas, nos termos que se sucedem: […] “além da calamidade da seca, que tudo devorou, apareceu nos sertões do Apodi (RN) uma quantidade de morcegos (vampiros), que mesmo de dia atacavam as pessoas e animais, que já inanidos pela fome não tinham mais força nem ânimo para afugentá-los. […] Nas estradas, pousadas e mesmo em casas, encontravam-se tropas de pessoas, homens, mulheres e crianças mortos ou moribundos, arrastando-se exangues pela fome e pelos morcegos. Não era raro encontrar-se habitação, onde, a par de cadáveres em putrefação, se achavam miseráveis ainda vivos, prostrados no chão ou no leito, cobertos de morcegos que as vítimas não podiam, sequer, enxotar.”

Este depoimento macabro, entretanto, é útil para a compreensão do profundo apego e amor do sertanejo pela xúva e o caráter singular deste nome. Apego que foi aumentando, paulatinamente, à medida que as quarenta secas se sucediam na história, e onde 700 mil nordestinos pereceram em uma única delas. Igualmente, serve como advertência para vindouras ocorrências – a de 1979-1983 está fresca na memória. É verdade que a política hidráulica, iniciada nos anos trinta, implementou uma robusta infraestrutura de armazenamento de águas, reforçada pelo Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Porém, há de se convir que neste território, onde se sustentam as coisas, a natureza e os homens, predomina um clima semiárido irregular (Sair), que pode propiciar frescos e fecundos invernos, como vem acontecendo nesses últimos cinco anos, mas com possibilidade de ocorrerem longos períodos de estio, acompanhado do colapso das águas. Além disso, a crise climática global é outro elemento inquietante, o que nos leva a recomendar a preservação e a recuperação de nossos recursos naturais, sobretudo o replantio de nossas matas e caatingas. Afinal, são cerca de 28 milhões de pessoas que aqui habitam, a desafiarem a nossa sustentabilidade.

Por último, quero aqui prestar a mais altaneira homenagem ao mês de março, ao dia 22 (dia mundial da água), que me possibilitou ouvir, quase diariamente, o som mole da xúva caindo do telhado; também, ao inverno incomum, presente de PachaMama, que me permitiu usufruir de várias manhãs fresquinhas e mansas e de observar o chão, a rua, os bairros, a cidade e as almas lavadas pela xúva; que me deixou vislumbrar as caatingas verdejantes, em flor, parecendo mágica. E que me levou a perceber que a alma sertaneja é molhada, feita de xúva.

[1] Professor do ensino de 3º Grau em Cajazeiras – PB. Ex-professor da UFPB e UFCG.

[2] Entidade sagrada da chuva em tupi-guarani.

[3] Mãe Terra em quíchua.

[4] Ocorreram 40 secas entre os séculos XVI-XX. A penúltima, sucedida em 1979-1983, matou 700 mil pessoas de fome, segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra : CPT/CEPAC/IBASE. O genocídio do Nordeste: 1979-1983, São Paulo: Hucitec, 1987, p. 40.

[5] JOFFILY, Irineo. Notas sobre a Parahyba. Brasília: Thesaurus, 1977, p. 173.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.


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Cleanto Beltrão de Farias

Cleanto Beltrão de Farias

Cleanto Beltrão é professor do Ensino de 3º Grau; doutor em Ciências Jurídicas e Sociais; professor aposentado da UFCG, com atuação nos campi de Cajazeiras e Sousa e presidente do Partido dos Trabalhadores de Cajazeiras-PB.

Contato: [email protected]

Cleanto Beltrão de Farias

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Cleanto Beltrão é professor do Ensino de 3º Grau; doutor em Ciências Jurídicas e Sociais; professor aposentado da UFCG, com atuação nos campi de Cajazeiras e Sousa e presidente do Partido dos Trabalhadores de Cajazeiras-PB.

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