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Cristina Moura

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Com pimenta e tudo

05/03/2020 às 11h19

Coluna de Mariana Moura

Na crônica passada, cometi um erro duplo, de concordância nominal e de revisão. Eita. Ainda bem que existe uma alegria dupla também: leitores compreensivos e edição toda semana. No início do último parágrafo, escrevi: Mas confesso que minha torre de refrigerantes ruiu e, com ele, grande parte da minha ligação com a cor lilás. Correção: a torre de refrigerantes ruiu e, com ela. Ela: a torre. Eu poderia também concordar com eles, os refrigerantes. Mas, estou aqui remando.

Esse pronome masculino surgiu porque eu ia falar de mundo de refrigerantes. Quando mudei para a palavra torre, achando o termo mais apropriado, engoli a concordância com pimenta e tudo. Essa doeu. A torre desabou na minha estrada dos tijolos amarelos, cujo primeiro entroncamento desemboca na Terra do Nunca; de lá, há uma brecha para As Mil e Uma Noites – obra lida na sua língua original, em árabe. Meu sangue mouro ferveu. Deparei-me comigo mesma. Isso é segredo.

Falando em livros, na crônica retrasada, ou seja, na crônica Lino e Leno, deixei transparecer minhas características de repórter. São características que se espalham em ramas. Não sei bem quando comecei na vida a fazer esse trabalho, mas pelo menos eu sinto que nunca vou deixar de ser. Talvez eu tenha iniciado quando tentei descobrir quais eram as versões reais das músicas tocadas no meu trenzinho. Eu nem sabia quem eu era, muito menos o que era música e o que era pesquisar. Talvez eu nem soubesse o que estava querendo. Sei que A Fonte do Itororó, canção folclórica e de domínio público, era um dos meus alvos de observação.

Talvez eu tenha iniciado de verdade, e com consciência, quando editei um dos jornais da sala de aula, na sexta série. Tínhamos três edições. Éramos fortes. Aos onze anos de idade, nosso repertório intelectual já discernia o que era brincadeira ou piada daquilo que era concorrência acirrada ou campanha para presidente de alguma repartição imaginária. Entendíamos, sobretudo, que nosso ritmo era uma festa: foi com tal pensamento que solidificamos as nossas amizades.

Anos depois, tornei-me repórter de fato e de direito. Continuarei, seja em que vertente do conhecimento estiver. No atual dia a dia de professora, assisto a uma reportagem diária. É um assistir participante. Daquelas dezenas de olhares frenéticos, surgem personagens diversos, que se misturam aos contos, aos minicontos, aos ensaios, aos romances, aos poemas, pois se consagram como pontes para o alvorecer das ideias.

Percebo uma variedade de jogos, enlaces, entraves, comemorações, flertes, recomeços, viagens, acordos. Percebo o menino que está a fim da menina, a menina gótica, o tímido sofredor, o gago quase disfarçado, a religiosa combativa, o líder nato, o malandro agulha, o capitão-do-mato, o menino do interior, o garoto do shopping.

Percebo quem não me percebe. Não há como fugir. Não quero que você, querido leitor, considere que estou com rompantes de vaidade. Lembre-se que nem tudo é confortável. Há situações em que eu rezaria para não perceber a poeira subindo, mas acontecem.

Olhares esperançosos, olhares aflitos, olhares perdidos, talentos reprimidos, dores enrustidas, vitórias tantas: um celeiro de histórias. Com isso, percebo a mim mesma. Percebo-me, com as minhas pessoas dentro da mesma. Dentro da mesma pessoa. Falo das muitas pessoas que somos, cada uma com seu balanço, dentro da pessoa principal. Exprimi, em algum rápido exemplo, um pedaço de uma das minhas pessoas, a repórter. Sim, pois dentro da pessoa repórter existem inúmeras outras pessoas e repórteres.

Há quem diga que o faro seja nato do repórter; há quem diga que existam técnicas para despertar essa argúcia.

Mas, pelo que provavelmente disseram as minhas tetravós, noutros linguajares, para cada linha existe um ponto.

Repórteres dependem de datas, testemunhos, lugares, imagens, pormenores. Um caminhão de pormenores. Eis a chave para toda a questão da alma de um repórter. É o pormenor que se torna grande, por ser um acontecimento ou um dado fundamental para o desenrolar de um caso. É o detalhe que faz a manchete, é o detalhe que derruba a muralha, é o detalhe que embeleza o bolo. É do detalhe que o povo quer saber. Bora.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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