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Mariana Moreira

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Memórias assombradas

03/10/2025 às 15h30

Coluna de Mariana Moreira - Imagem ilustrativa - reprodução/wikipedia

Por Mariana Moreira – Nas frestas das janelas carcomidas pelo tempo ondas de vento assobiam sons e sopram poeiras de memórias e passados. Os frechais escondem e abrigam ninhos de rolinhas e galos de campina que enchem os fins de tarde de sonoros cantos a espantar a melancolia que vageia por entre cômodos abandonados e piso gasto de tempo e de saudades.

O casarão se ergue entre touceiras de jurema e marmeleiro. Paredes com reboco esgotado pelo tempo revelam rachaduras e fissuras que indicam comprometimento e eminência de ruina. O bater insistente de uma janela açoitada pelo vento empresta um clima de mistério e abandono. Uma revoada de pássaros traz à cena um ar de mistério.

Mas o velho casarão insiste em ficar na curva do caminho.

Aos mais atentos é permitido ouvir murmúrios de vozes e risos de outrora que emanam de seu interior. Risos e vozes que trazem a expressão da alegria pelo encontro, da tristeza pela partida, da ansiedade pela espera de um retorno, da expectativa de uma alegria anunciada, do medo de uma voz repressora e dominadora.

E, no velho casarão, homens e mulheres apagados pelo tempo circulam em forma de saudade. E, mesmo assim, homens trazem para as prosas na sala principal, mobilhada com cadeiras de madeira maciça e quatros de santos ornando a parede, conversas sobre secas inclementes, fartos invernos, abundantes safras do algodão. Na cozinha e nas camarinhas mulheres sussurram histórias de traição, de filhos bastardos, de namoros proibidos. Trocam receitas de bolo e firmam compromissos de visitas e permutas de amizade e apoio em um silencia que invisibiliza e apaga o feminino.

E o decadente casarão com seu teto em ruinas, suas paredes carcomidas, suas portas e janelas definhando pela ação do cupim e da corrosão de sol e chuva mantem-se como testemunho de tempos idos e como peça de medo. Alguns, de forma convicta, assumem a narrativa de que o casarão é moradia frequente de assombrações. Muitos, inclusive, narram episódios de aparições de almas penadas que se debruçam em janelas, que se firmam em portas e, algumas, mais ousadas, que abordam os medrosos mortais com narrativas de pecados não perdoados ou de botijas enterradas a espera de que os mais afoitos arranquem os tesouros e, assim, livrem estas almas da peregrinação por purgatórios.

Mas, no velho casarão moram também história, vida e cultura que a ação do tempo e a negligência humana estão apagando nos fazendo aprender a lição da poetisa Cora Coralina:

Um montão disforme. Taipas e pedras,
amarradas a grossas aroeiras,
toscamente esquadrinhadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadas de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.
Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

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