O Galo da Minha Vizinha

Por Cleanto Beltrão de Farias
A Orfeo Cartaxo Farias
Nunca imaginei que um ser tão reles viesse a martelar minha cabeça por tanto tempo, com lembranças vivas, persistentes e inquietantes. Isso mesmo! Refiro-me a um insignificante galo criado no quintal da minha vizinha, num pequeno cubículo colado no muro dos fundos. Durante as madrugadas, Abelardo, pressentindo o novo dia, cocoricava triunfalmente, com cantos robustos que rasgavam o silêncio das madrugadas do bairro Sol Nascente. O identificava dos demais galos, ao derredor, pelo timbre rouco de suas cordas vocais, pela intensidade de seu canto e pelo bater possante de suas asas, que denotavam ser um galo de porte avantajado, certamente admirado e amado pelas galinhas parceiras. Foi assim, por cerca de seis meses, que ouvi os cantos melancólicas de Abelardo, o que iriam me proporcionar muita perturbação futura. Eles coincidiam com o exercício da minha espiritualidade, que costumo praticar diariamente, entre quatro e cinco da manhã, onde permaneço em estado de meditação e de oração, conectado os meus mentores, quando lhes rogo paz, inspiração, proteção e saúde. Essa concomitância do meu despertar com os cocoricós do galo – incomodavam, por certo – remeteu-me, num certo dia desses, à narrativa da negação de Pedro. Em dita hora, sob cerrado silêncio e profundo êxtase, vivenciei a noite de trevas que se abateu sobre Jerusalém, na sexta-feira, após o último suspiro, tomada pelo recolhimento geral do povo, pela profunda tristeza e por intenso medo. Reinava a escuridão plena, entrecortada por fortes tempestades de raios e o ribombar de assustadores trovões. Chovia torrencialmente, sem trégua. Nessa hora, ouvi o canto de Abelardo por três vezes.
Certamente, aquele galo estava querendo me dizer algo, apelando a um sensitivo o sentimento de solidariedade contra a sua prisão, o tolhimento de sua liberdade e o tratamento cruento que recebia todos os dias. Sempre aos domingos, a vizinha adentrava o galinheiro, caçava uma galinha, o que deixava o restante do plantel em polvorosa, pois todas sabiam que a companheira seria esganada, ali mesmo, e com o pescoço quebrado. A zoada que se seguia era tamanha que chamava a atenção e incomodava a vizinhança, sendo que um elevado grau de ansiedade se instalava entre as sobreviventes diante da dúvida: quem será a próxima? Ditos galináceos procediam da Feira das Galinhas, conhecido e tradicional ponto de comércio do centro da cidade, nos dias de sábado. Esses penosos vinham dos sítios, trazidos por pequenos rurícolas, ávidos de ganhar alguns trocados na feira. Na roça, eram criados soltos, ao relento, em contato direto com a natureza. Aqui, amarrados, pendurados de cabeça para baixo, arrastados e maltratados, eram negociados, transportados, trancados, cevados, almoçados e jantados, sem clemência. Costumo ver minha vizinha trazendo galinhas penduradas a caminho de casa.
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Esta narrativa me remete à história de João e Maria, pela semelhança do contexto, aquele conto de fadas onde duas crianças, filhas de lenhador, acossadas pela fome e pela pobreza, são abandonadas dentro da mata e lá se deparam com uma mimosa casinha de chocolate, onde vivia uma bruxa cruenta que os acolhera e os aprisionara, passando a engordá-las diariamente, para comê-las futuramente. Fechadas num quarto, viam-se obrigadas a mostrar, todas as manhãs, o dedo mindinho por um pequeno orifício da parede, que possibilitava prever o melhor dia de matá-las. Como todos já conhecem, feliz foi o desfecho dessa história. Mas, com Abelardo, foi muito diferente.
Já é possível compreender que defendo o direito de todos os seres vivos a um tratamento digno dos humanos. Muito mais que um direito ambiental ou animal, mas um direito da natureza – de Pacha Mama ou da Mãe Terra – conforme as formulações mais avançadas desenvolvidas na atualidade, de uma cosmovisão ancestral, onde todos os seres estão conectados universalmente. Nesta convicção, a afetação de qualquer um deles provocará alterações danosas ao conjunto. Representa a ruptura com o antropocentrismo e o racional-cientificismo liberal quatrocentista, que disseminaram a fictícia superioridade humana e consolidaram a dominação e a destruição na Natureza por séculos, nos conduzindo às insidiosas alterações climáticas do presente. Esse direito envolve valores éticos e solidários, espirituais e humanitários, capazes de manter os nossos olhos abertos para contemplar e perpetuar a beleza do Éden e da criação. Assim, ao manifestar o meu protesto por Abelardo, denuncio o tratamento brutal concedido por nós aos seres vivos. Este sentimento está tão arraigado na minha consciência que costumo acordar, nas madrugadas que antecedem às feiras livres, sob inquietação e angústia profundas, por saber que naqueles momentos centenas de seres vivos estão sendo brutalmente abatidos a marretadas e machadadas, esquartejados ainda vivos, em cenas horripilantes de muito sangue, destruição e ilimitado sofrimento. A esse propósito, existe uma expressão criada por Caetano Veloso que traduz bem esse dilema: cara de boi lavado. Ser ainda vivo, mas sem nenhuma esperança, banhado para ser levado ao sacrifício, na fila do cadafalso, da morte, desenganado. Há até uma história verdadeira de um touro, narrada nas redes sociais, ocorrida em Goiás ou Mato Grosso, que, em ato de defesa de seu instinto de vida, aflição extrema e de bravura, consegue sair do corredor da morte de um frigorífico, evadindo-se desse prédio sinistro e alcançando a rua de uma dada cidade. Lá, a multidão começa a acossá-lo e enxotá-lo sem piedade. Diante da resistência dessa desventurada criatura, a empresa convoca o aparelho de segurança pública local e este infeliz animal é metralhado em via pública, abatido com tiros de armas pesadas. Há outras incidências também muito graves a violarem o direito dos animais, como é o caso do transporte de milhares deles em navios insalubres, por alto mar e como coisa qualquer, onde seguem para portos da Europa e da Ásia, onde serão descarregados diretamente para o abate nos frigoríficos. E o que não dizer de milhares de pássaros, aprisionados em gaiolas, mas programados para voar e gozar de liberdade plena, além de nos concederem sons maviosos, divinos, do alto das copas?
O instinto da maldade é bem próprio do ser humano, estimulado por egoísmos exacerbados, ignorâncias, alterações psíquicas, desigualdades e valores liberais incompatíveis com um mundo justo e solidário. Esta maldade sem limite contra a natureza vi materializada numa véspera de São João, quando um certo conhecido das proximidades, na Avenida Francisco Mathias Rolim, acendeu uma fogueira debaixo de uma frondosa cajazeira, plantada pelo saudoso Adalberto Nogueira, quando aqui morou. Ao presenciar aquilo, usei do confronto, exigindo que apagasse o fogo e retirasse aquele monstro dali. Restou o aprendizado. As plantas são seres inteligentes, evoluídos, comunicantes, de alta sensibilidade, revelam pesquisas botânicas de ponta. Não faz sentido a humanidade viver sem elas. O mundo que vivemos é da predominância das energias intercomunicantes, espirituais. Precisamos fecundar esta cidade de muitas árvores – frutíferas de preferência – , fazer crescer suas copas e lhe atribuir a majestade urbana merecida.
Pois bem, voltando ao foco destas linhas, a Abelardo, ao galo da vizinha, ele foi por fim defenestrado numa fatídica manhã de domingo, deixando-me traumatizado com o ocorrido – apenas ouvi. Quero lhe passar, dileto leitor, em pormenores e aliviado, as razões desse recalque e desse protesto, que só me têm feito sofrer. Mas, somente com a leitura do texto vindouro.
Cleanto Beltrão de Farias é geógrafo e licenciado pleno em Geografia (UFPB), especialista em planejamento urbano e regional (UFRGS), mestre e doutor em ciências jurídicas e sociais (UFC, UMSA/ESTÁCIO) e professor aposentado da UFCG.
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