O travo de agosto
Por Francisco Cartaxo
Agosto, mês do desgosto. Apenas uma rima? Muitos acreditam nos fluidos ruins deste mês. Nem a maravilhosa lua afasta a crença no aziago mês. Desgraças pinçadas da história dão asas à crendice: a morte trágica de Euclides da Cunha, no dia 15 (1909), o suicídio de Getúlio Vargas, no dia 24 (1954). A inusitada renúncia de Jânio Quadros, no dia 25 (1961), quase leva o País à guerra civil. Fatos, entre muitos avivados no imaginário coletivo, quase imprimem selo de coisa real. Pura superstição? Mas há quem acredite, cegamente.
Tenho razões íntimas para enxergar sombras agourentas em agosto. Nesse mês, dia 29 do distante 1975, perdi meu pai, Cristiano Cartaxo. Nove anos depois, em 10 de agosto de 1984, foi a vez de Helena, minha primeira esposa, vencida pelo câncer, numa época em que a medicina carecia de recursos eficazes para mantê-la viva. Hoje seria diferente. O vice-presidente da República, José Alencar, está aí, a enfrentar cirurgia após cirurgia. E ainda serve de cobaia em hospital americano. Sempre de ânimo forte. Um exemplo que ajuda as pessoas da planície a resistir ao câncer.
Quando Helena teve confirmado o diagnóstico, até a palavra câncer era pronunciada com reserva. Falava-se baixinho, em circunlóquio, com medo de atrair mais desgraças ainda. Entre o diagnóstico definitivo e a morte lhe restou menos de dois meses: 13 de junho e 10 de agosto. Nessa nesga de vida, seu ânimo não se abateu, muito embora visse o corpo definhar, assustadoramente. As intervenções cirúrgicas “para manter o paciente vivo a todo custo”, como então diziam os médicos, traduziam o protocolo que permanece atual. Alencar já vai na 15ª cirurgia!
Helena sabia da gravidade de seu mal. Jamais me falara, porém um gesto, uma palavra reticente, um olhar triste, tudo ruminado, remoído, revolvido, em noites insones, dão a dimensão de minha estúpida ignorância. Faleceu aos 40 anos, pouco tempo, muito pouco para quem era afeita às lutas do mundo. Sempre. O golpe de 1964 a surpreendeu na presidência do Diretório Acadêmico, militante da Juventude Universitária Católica (JUC), então celeiro de lideranças, ainda hoje atuantes na cena política brasileira. Esbanjava energia. Assim a conheci, cabelo curto por ser prático, para não perder tempo, dizia, confiante na própria beleza sem artifícios. Igual a sua límpida inteligência. Atributos que me seduziram a mim, seu professor.
Construímos juntos muitos sonhos de realização pessoal e felicidade coletiva, desde a noite em que fui levar-lhe um livro de presente. Simples pretexto para ir a casa da aluna. Helena me aguardava à porta, como quem espera o namorado. As mãos entrelaçadas nos primeiros passos pela Avenida Sete, em Salvador, simbolizaram o nascimento de uma relação de 20 anos.
Vivemos também ilusões desfeitas. Coletivas e pessoais. O golpe de 64, a frustração das “diretas já”. As rusgas do casamento. Ficaram os filhos. Três. Uma mulher, dois homens. A neta pouco sabe da avó. Ao neto, já anunciado, um dia será dito que a avó morreu em idade de ser mãe. Faz 25 anos. Um quarto de século! Por tudo isso, agosto me traz um travo. Um travo de desgosto.
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