Sobre a Cegueira dos cegos
Cego não é aquele que não vê. Cego é todo aquele que mesmo vendo, não enxerga; aquele que vendo o que vê, não consegue distingui-lo do que é imagem, sombra ou realidade. Cego é todo aquele que mesmo vendo não possui o poder da distinção. A cegueira é a incapacidade de perceber as distinções imediatas e contingentes. Ainda, Cego é aquele que homogeniza tudo e todos. Esse tipo de cegueira torna-se porta de entrada para o preconceito e a intolerância com as identidades diversas e particularidades distintas alheias.
Um dos maiores estágios da cegueira é quando ela se torna uma forma requintada de visão, de entendimento e compreensão da realidade. Cegos são aqueles que mesmo vendo não enxergam, mesmo tendo em estado de perfeição a sua capacidade ocular, são carentes de percepção além do cristalino e da retina.
Cegos são aqueles que mesmo vendo não enxergam, pois o “não-ver” torna-se condição para uma existência consciente e livre; quando o “não-ver” já está instituído como norma e legitimado como regra geral, a vida coerente torna-se impossível, pois a hipocrisia para a ser “o ver oficial” que será partilhado por todos aqueles que se dizem realistas.
Um povo cego escolhe segundo a sua visão e seu modo oficial de enxergar. Um povo cego escolhe a hipocrisia, portanto, também os hipócritas, como se estes fossem a imagem do coerente e do íntegro. Um povo cego usa os critérios da sua cegueira para construir valores e estabelecer a imagem dos homens bons que se adequem á suas exigências. Cego é aquele que vendo o falso elege-o como verdadeiro ao mesmo tempo em que a verdade para ele não passa de um critério cultural. A cegueira sempre ignora o essencial para privilegiar o acidental. A cegueira domina os homens e as mulheres. Estes se tornam cegos pela presunção de poder ver tudo ou saber que veem tudo. Toda cegueira é um presunção da arrogância que não admite um “não-saber” e portanto, um “não-poder”; que não se constitui em uma incapacidade, mas em virtude; O axioma socrático é um antítodo á cegueira vingente: "Só sei que nada sei". A onipotência intelectual é sempre um subterfúgio para os habitantes de Cegonópolis – A cidade dos cegos.
Os homens cegos escolhem sempre o errado para propagar o certo; preferem sempre o imoral como justificativa para suas cegueiras morais. Cegueira moral é quando a trave do meu olho impede de enxergar que a minha trave ocular é bem maior, mas bem mais mesmo que o cisco que impede o enxergar alheio. Os cegos sempre julgam que a sua visão interpretativa é perfeita; os cegos sempre acreditam que enxergam mais. A cegueira é um tipo visão para os cegos.
"Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem." (SARAMAGO, Sobre a cegueira. pág. 310).
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