header top bar

Mariana Moreira

section content

Um conto de Natal

24/12/2021 às 18h40

Coluna de Mariana Moreira. (Imagem ilustrativa - reprodução da internet).

Por Mariana Moreira

Cara suja, pés descalços, olhos espichados de tristeza. Encabulado, em sua inocência infantil, pede “uma ajuda” para comprar a roupa do Natal. Numa escadaria a mãe, com rosto sofrido de Maria, busca alguma imaginária manjedoura onde possa ser acolhida e descansar das cotidianas dores e agruras de uma vida despida de tudo. E a criança me olhar com olhos de menino. E nos seus olhos cintilam um longínquo brilho de esperança como a teimar na crença de que homens de boa vontade sempre irão zelar por sua inocente história. E ele quer apenas uma roupa nova de Natal.

Seu olhar se dirige para outros passantes da calçada. E o apelo se repete e reverbera no vazio de sua invisibilidade social e humana. E ele quer apenas uma roupa nova de Natal.

Do pai José ele traz borradas lembranças de um tempo alegre que, no colo paterno, ele se sentia protegido e desenhava futuros. Hoje, a lembrança paterna se limita a alguns esporádicos momentos de visita ao presídio, onde cumpre pena por roubo. Tangido pela fome, pelo desemprego, pelas necessidades imediatas da família, o pai rouba um fardo de arroz de um depósito e, na sua crença de humanidade, se encanta com a ferramenta tecnológica e se mostra para as câmaras de monitoramento. O presídio, para ele, foi a derradeira e única hospedaria que lhe abriu as portas e lhe concedeu abrigo, depois de tantos “nãos” ouvidos de bocas cristãs, em portas entreabertas e, agilmente, fechadas.

E o menino quer apenas uma roupa nova de Natal.

E na calçada olha para os rostos apressados que se desviam de sua insignificante presença.

Outras crianças, de tantas outras Marias e Josés, chegam em algazarra e emprestam volume aos apelos, que misturam convicções de Papai Noel, fé em mulheres e homens, desprendimento e entrega ao estranho que enxergam como igual. Dividem a possibilidade, que convertem em certeza, de que terão, no Natal, os presentes que as mensagens comerciais enfatizam como acessível a todos. E projetam brincadeiras, visitas, lugares com os ilusórios presentes que se constituirão, somente, em quimeras a se dissiparem no vento da realidade, manifesto na pronuncia de mais um não ao apelo do menino que deseja apenas uma roupa nova para o Natal.

E seus olhos me fitam com olhos de menino. E neles vejo outros tantos meninos e meninas em trajes rotos, pés descalços, caras sujas e mãos pedintes de presentes de Natal. Meninos e meninas sequiosos de um gesto amigo de afeto, uma mão em aperto, um olhar em igualdade, um abraço despido da quaisquer vestígios de ostentação.

E o menino que quer apenas uma roupa nova de Natal recebe de uma das tantas Marias o que abunda dos gastos trapos de seu filho.

E o menino, finalmente, grita: agora eu tenho uma roupa nova de Natal.

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Mariana Moreira

Mariana Moreira

Professora Universitária e Jornalista

Contato: [email protected]

Recomendado pelo Google: