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Cristina Moura

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Uma progressão geométrica

05/06/2020 às 09h24

Coluna de Cristina Moura

Sonhávamos todos juntos. Não dormíamos exatamente na mesma hora. A diferença de milésimos de segundos se superava a cada dormida. Naquela noite, em plena festa junina, entramos no ritmo e dormimos. Em múltiplos sonhos, vimos as cenas, todos juntos. Como se dava isso, com silêncio e exatidão, não sei. Não entendo. Mas, ao acordarmos, nós todos, nós cento e cinquenta e tantos, contávamos a história parecida. A fila número três contava com traços semelhantes à fila número trinta.

Parece que havia uma progressão aritmética nas compreensões. Fiquei de estudar mais essa hipótese. Fazer um mesclado com outras hipóteses. Não. Não estávamos embriagados. Estávamos conectados com o pensamento que, a depender do enlace, torna-se embriagante. Verdade. Em determinados momentos de concentração, fiz as contas. Todos nós estávamos a respirar em centésimos, em novelos de ar, de forma pausada.
Era o sonho mais rebuscado de todos. Sem medo. Sem amarras. Um de nós teria que acordar primeiro e chamar os outros. Chamar de maneira não linear, sem pressa, sem solavancos. Esse foi o combinado de cem anos atrás. Reforçávamos sempre as pontas dos combinados e percebíamos que um centenário de certezas já estava mais do que bom. Mais do que tudo.

Precisamos reacender os combinados, disse meu vizinho. Era noite de São João. Pularíamos a fogueira para que os batizados se tornassem válidos naquela noite. Haveria um júri. Vejamos que, somente nesse tipo de sonho, aparecem sempre: um tribunal, um acusador, um réu, uma argumentação que se expande dos dois lados. A depender da época do sonho, marchamos todos juntos e miramos elementos parados no tempo: carrasco, inquisidor, mago, escriba, telegrafista. Nesse caso, é preciso que algum de nós se comunique exatamente como na época retratada.
Numa dessas armadilhas, surgiu o galego-português, numa das apresentações. Como poderíamos desvendar o emaranhado latino pulsante na Península Ibérica, não sei. Começamos a jogar com a matemática. Ganhamos uma progressão geométrica. Foi bonito também. A língua se mesclava em cores e formas, com o primitivo arremessado à nossa visão: espanhol, italiano, francês, romeno. Os compactos dos idiomas, em poucas frases, davam luz ao entendimento.

Os integrantes de números ímpares correram para normatizar as coisas, oficializar as regras. Em vão, talvez. Não se lembravam que, a cada sonho, mergulhado em centenas de anos, as línguas se enchem de gente e novas palavras e combinações são engendradas. Sim. A ponto de explodir no texto, como aqueles fogos, daquela noite, daquele jeito. O milho assando. O forró troando. E quem quiser que conte os segredos.

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

Cristina Moura

Cristina Moura

Jornalista e Professora cajazeirense, radicada no estado do Espírito Santo.

Contato: [email protected]

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