Vau da Sarapalha
Teatro Íracles Pires lotado. Uma quarta-feira. O ano era 1993, minha tórrida atmosfera de preparo para o Vestibular. Colégio Objetivo. Ali mesmo, naquele casarão onde funcionava o Hotel Oriente. Um jovem rapaz, estudante de Direito na UFPB, em Sousa, e que trabalhava bem perto, no escritório de contabilidade de Seu João Meireles, chamou minha atenção. Melhor ainda saber que era neto de Dona Lourdes, do Hotel Cajazeiras, uma senhora a quem eu nutria de longe um certo carinho e admiração. O rapaz se chama Meilson Cunha. Foi um namoro rápido, poucos meses, mas suficientes para que mantivéssemos depois uma relação de amizade sincera. Lembro que ele disse que achava bonita a minha aproximação com a literatura. Falou que leria meus livros. Ótimo. Esse dia vem chegar. Sou grata a ele pelo presente de ter me levado àquela casa de espetáculos naquela noite.
Vau da Sarapalha, há anos em cartaz com o grupo paraibano Piolim, estava ali, na minha frente, descortinando um pedacinho do universo riquíssimo de João Guimarães Rosa. Mais tarde, demorei a dormir. Verdade. Fiquei horas lembrando de Escurinho, que com seu personagem fez gato e sapato da sonoplastia. Um show. Anos depois, comecei a entender essa monstruosidade de talento que é o percussionista e compositor. Grande Jonas.
No elenco também os irmãos cajazeirenses Soia Lira e Nanego Lira. Que personagens profundos. Sintonia pura. O chão se rasgava para meus olhos em camadas singelas de realidade. Junto com Everaldo Pontes, os diálogos escancaravam para o público as angústias da zona rural, carente de certezas e investimentos. Eis o talento do autor, ao contar um causo que parece simples, a construção de um vau na beira do rio e a luta psicológica de um personagem que se apaixona pela mulher do amigo. A malária como grande nebulizador da trama: febres, delírios, desilusões, ameaças, distanciamentos. A morte flertando o tempo todo.
Havia um elemento visual que me convidava a outros respiradouros lúdicos: o fogo. Podia ser interpretado de diversas maneiras: gerado na mata, esquentando a panela, ameaçando o grau de confiança dos dois amigos na narrativa. Quentura. Os bichos. Calafrio. Muitos contrastes que somente um diretor com o porte de Luiz Carlos Vasconcelos acertaria com sensibilidade. O sobrenatural foi algo bem planejado e executado. Um primor. A técnica em persuadir e envolver o leitor no teatro foi acertada, no alvo. Era um enorme texto que exibia seus contornos e se concretizava.
Daquele dia em diante, não li somente Sagarana, a obra que inspirou a peça, mas o que eu pude de Rosa. E ainda falta tudo o que dizem dele. Aí é infinito. Que bom. Continuemos a estudar esse médico e diplomata, mineiro do oco da natureza, que inaugurou um jeito diferente de escrever e transportou para o papel o jeito de falar, o jeito do habitante do interior do Brasil. Sempre há um quilate de mágico, de duvidoso ou temeroso. Nessa brecha, entram as nossas vontades de descobrir mais. Mais e mais.
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